Saúde mental e relacionamentos: mulheres psicoatípicas merecem afeto
Conversamos com as neuropsicólogas Marcela Silva e Ester Horta, fundadoras da Baobá Neuropsicologia, sobre relações amorosas, borderline, depressão e ansiedade
Por Amanda Stabile
05|10|2022
Alterado em 03|12|2022
Historicamente, mulheres psicoatípicas, com um funcionamento da mente considerado “fora dos padrões”, foram incompreendidas, tiradas do convívio da sociedade e até queimadas acusadas de bruxaria. Essas “doenças”, que posteriormente descobriu-se que eram originadas por conflitos psíquicos e sofrimentos emocionais, foram nomeadas como histeria – algo considerado particular de pessoas com útero. Apenas na virada do século 19 para o 20, se constatou que escutá-las poderia ser o caminho para uma “cura”.
“Freud, tentando escutar a histérica, percebeu que talvez ela quisesse dizer alguma coisa com o seu corpo. E a histérica falou do amor, do desejo, do ódio e da culpa”, explica a psicóloga Olivia Bittencourt Valdivia no artigo Psicanálise e feminilidade: algumas considerações. “Foi pelas mãos de Freud que a histeria deixou de ser ‘doença’ da mulher, tornando-se a possibilidade de uma relação humana ‘doentia’ que submete uma pessoa a outra”, complementa.
Se, há pouco mais de 100 anos, sequer era feito um esforço para compreendê-las, quem dirá para amá-las. Hoje em dia, muito evoluímos em relação ao estudo da mente e do comportamento humano. Pessoas diagnosticadas com tratamento mentais e psicológicos já são cerca de 970 milhões, segundo o último relatório sobre saúde mental da Organização Mundial da Saúde (OMS). Apesar disso, ainda sofrem estigmas.
Psicofobia é o nome específico neste caso, que se refere ao “preconceito contra as pessoas que têm transtornos e deficiências mentais”, de acordo com a Associação Brasileira de Psiquiatria, e que pode se manifestar no ambiente de trabalho, na escola, na família, na criação de políticas públicas e, inclusive, nas relações afetivas.
“No entanto, apesar das mulheres, em especial mulheres negras periféricas, sofrerem isso cotidianamente, é uma opressão pouco nomeada e debatida. Compreendemos a psicofobia, de acordo com uma definição que foi levantada pela ativista Charô Nunes [comunicadora, formada em arquitetura e urbanismo e feminista interseccional], como uma violência dirigida à pessoa que é considerada psicoatípica, que desconsidera o modo como aquele indivíduo se coloca no mundo, sua identidade e a coloca no lugar do inadequado”, explicam as psicólogas especialistas em Neuropsicologia, Marcela Silva e Ester Horta.
Diagnóstico e cuidado
Simone Bispo se define como uma pessoa muito complexa e plural. Nascida em São Paulo (SP), mas criada em Recife (PE) desde muito cedo, a publicitária conta que “é uma pessoa que adora sair, adora amigos, mas também gosta de ficar quieta de boa, sozinha”.
Diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) e com Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) – caracterizado pela impulsividade, instabilidade emocional e de humor –, explica que perceber que tinha alguma coisa diferente com ela foi um processo muito tardio e demorado de constatação.
“Eu cresci sendo vista como ‘a grossa, ‘a impaciente’, ‘a rude’. Então nunca se fez esse link com a ideia de ser algo relacionado à saúde mental”, recorda.
“Eu fui percebendo sintomas de ansiedade. Fui tendo crises. Isso em meados de 2018 para 2019. E só então comecei a terapia e fui em um psiquiatra. Foi uma coisa que demorei demais para enxergar”.
As psicólogas alertam que, em relação TBP, a literatura aponta que pessoas autistas ou pessoas transgênero ou que não performam a cis-hetero-normatividade podem ser erroneamente diagnosticadas como tendo o transtorno, bem como a associação do funcionamento neurodiverso autista.
“É algo que também observamos na nossa prática clínica, na qual mulheres adultas buscam ou são encaminhadas para avaliação psicológica e neuropsicológica, inicialmente com diagnóstico de Ansiedade, de Depressão ou TBP, mas que, em uma avaliação mais cuidadosa e interdisciplinar identifica-se que a mesma tem um funcionamento cognitivo dentro da neurodiversidade”, contam.
O Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG) é caracterizado por uma preocupação excessiva e persistente. Dentre os sintomas, identifica-se agitação, dificuldade de concentração, inquietação e hipervigilância.
O Transtorno de Personalidade Borderline (TPB) é caracterizado por frequentes mudanças de humor, oscilação de emoções e comportamentos. Também há comportamentos como impulsividade, hostilidade, irritabilidade e isolamento.
A depressão é caracterizada por tristeza persistente e excessiva, baixo nível de energia e concentração, isolamento social e apatia, dentre outros sintomas.
Antes dos diagnósticos, Simone já havia tido alguns relacionamentos monogâmicos e não-monogâmicos, e percebia certa indiferença e pré julgamentos sobre alguns de seus comportamentos.
“Pessoas com o funcionamento psicodinâmico atípico podem manifestar afetos de forma que pessoas típicas definem como inadequadas ou insuficientes, mas está mais na não compreensão por parte das pessoas neurotípicas sobre o funcionamento psicodinâmico atípico”, explicam as especialistas Marcela e Ester.
“Depois, o meu diagnóstico, principalmente de borderline, foi me ajudando. Inclusive, falar sobre isso desde o começo com a pessoa faz muita diferença. As pessoas ficam mais receptivas. Elas ficam mais cuidadosas”, conta Simone.
As neuropsicólogas também apontam que conversar sobre o seu funcionamento psicodinâmico é importante. Há a necessidade de diálogo, autoconhecimento, parceria e, sobretudo, conhecimento das características e sintomas deste funcionamento para melhor auxiliar a parceria no relacionamento.
Em relação às mulheres negras com TPB, Marcela e Ester explicam que um estudo estadunidense, publicado em 2013 no Journal of Nervous and Mental Disease, constatou que essas mulheres podem apresentar sintomas mais graves de falta de controle dos impulsos e menos comportamentos suicidas do que as mulheres brancas com TPB, aumentando a possibilidade de serem diagnosticadas erroneamente e receberem tratamentos que não são ideais.
“Isso nos leva a pensar, extrapolando para um contexto brasileiro, quantas mulheres seguem subdiagnosticadas e sem acesso ao direito de ter seu funcionamento psíquico atípico reconhecido, cuidado e respeitado. Ou seja, até para que se fale sobre um diagnóstico é preciso que ele possa ser acessível e democratizado e notamos que há uma enorme lacuna deste acesso para mulheres negras e periféricas”, alertam.
A importância das redes de apoio
Assim como Simone, Camila Oliveira Alves, de 28 anos, também foi diagnosticada com Transtorno de Ansiedade Generalizado (TAG) – há cerca de um ano. Desde criança, sempre se sentiu extremamente ansiosa para se relacionar com outras pessoas, além de muito tímida e introspectiva – características que a acompanharam durante o crescimento.
Para ela, existem muitas diferenças nas formas de afeto em relacionamentos com pessoas psicoatípicas.
“Tu acaba querendo muito agradar e não sendo tu mesmo porque acha que vai perder a pessoa caso haja de acordo com a tua personalidade. Esse é um tema que eu abordo muito com a minha psicóloga hoje em dia”, confidencia a paulista que mora em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, há seis anos.
“Quando eu estava namorando, sempre que eu brigava com a minha namorada, eu tinha uma crise de ansiedade. Ficava muito mal, porque eu não conseguia controlar o que estava acontecendo. Isso foi desencadeando várias crises de ansiedade, sempre quando eu ficava feliz demais ou triste demais”, conta.
Para as neuropsicólogas, nestas situações, cabe à mulher respeitar seu espaço interno, buscar se autorregular emocionalmente e buscar seu apoio – seja um grupo, sua psicoterapia ou outro recurso. “Depois deste momento, é importante olhar para este relacionamento e se perguntar se está atendendo às suas necessidades (de afeto, de cuidado, de reconhecimento)”, pontuam.
Junto com a mudança de cidade e de área de trabalho, a programadora, que antes trabalhava como caixa de supermercado, conta que surgiram boa parte dos sintomas do TAG. Mas Camila demorou muito tempo para aceitar que estava doente, inclusive porque passou um ano desempregada.
“Eu fiquei depressiva nessa época. Já tinha essas crises de ansiedade e estava em um namoro abusivo. E era namoro à distância, o que só me deixou mais ansiosa. Foram dois anos bem horríveis, porque eu sinto reflexos até hoje”, recorda.
Sobre essas situações, Marcela e Ester alertam que identificar uma situação de abuso é um desafio para qualquer mulher, justamente pela oscilação do abusador. Os abusos não são constantes, pelo contrário, são imprevisíveis e intercalados com as fases de “lua de mel”. Ou seja, o abusador só é bom para a vítima quando convém a ele.
“Neste sentido quanto mais a mulher compreende seu próprio funcionamento, está numa rede de apoio e amparada psicologicamente, ela conseguirá encontrar melhor caminhos para romper com o ciclo de abuso, pois infelizmente é um ciclo que o abusador fará de tudo para manter, e só mesmo a vítima (com o apoio necessário) conseguirá rompê-lo”, pontuam.
Por fim, as especialistas também indicam que não se pode perder de vista que há uma estrutura capitalista e racista que adoece as mulheres. “Acreditamos ainda que o próprio entendimento desta dinâmica social a qual somos ‘forçadamente’ inseridas pode contribuir para a saúde mental destas mulheres, de poder também nomear as estruturas que as violentam e nesse processo poder separar o que é de si e o que é do meio”, concluem.
Este conteúdo foi produzido em parceria com o Instituto SulAmérica como parte da campanha #BemAmarelo
O Instituto SulAmérica lança em 12 de setembro o movimento #BemAmarelo, uma mobilização social pelo cuidado da saúde emocional como forma de prevenção ao suicídio – não apenas no Setembro Amarelo, mas em todos os meses do ano. Reforçando a mensagem de que saúde emocional importa e é um direito de todas as pessoas, a campanha oferecerá para quem mais precisa o acesso gratuito por seis meses a teleconsultas psicológicas e conteúdos educativos.
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