Caso de Samen: sexualização de mulheres negras é faceta do racismo
A modelo Samen dos Santos conversou com o Nós, mulheres da periferia e relembra o assédio sexual sofrido em hotel em São Paulo em julho. “Ele teve a audácia de perguntar quanto era”.
Por Mariana Oliveira
09|09|2022
Alterado em 09|09|2022
A cientista social e criadora de conteúdo, Nátaly Neri, define em sua palestra no Tedx “A mulata que nunca chegou”.”’Mulata’, foi um termo cunhado no passado colonial para classificar os filhos dos estupros cometidos pelos donos das casas grandes. Hoje em dia, é um termo racista que caracteriza mulheres negras de pele clara, magras, porém curvilíneas”.
No vídeo que conta com mais de um milhão de visualizações, Nátaly explica a problemática por trás do termo. “Existem mulheres em que a mulata chega. E quando a mulata chega, o que acontece? Quando a bunda chega, quando o peito chega, o que acontece com essas mulheres?”. Para Samen dos Santos, a “mulata” chegou. E junto com ela, uma herança racista e sexista.
Em 13 de julho, a modelo gaúcha de 31 anos, foi assediada por um hóspede em um hotel na cidade de Araçatuba, interior de São Paulo. Samen gravou o assédio e compartilhou em suas redes sociais. Logo o vídeo viralizou.
“Quando a mulata chega é insuportável, porque elas não conseguem andar na rua, porque elas não conseguem conversar com pessoas sem sentir o desconforto dos olhares, das piadas direcionadas a seus corpos”, conclui Nátaly na palestra. Isso quando os limites não são ultrapassados, como o ocorrido com Samen.
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O assédio
O motivo da publicação na internet foi uma forma de externar o sentimento guardado há tempos. “Eu postei porque precisava de uma aprovação das pessoas. Chegou um momento que eu achei estar exagerando. “Eu tive a oportunidade de gravar porque aquela abordagem do vídeo foi a quinta vez”.
Antes do estopim da cena filmada, Samen foi abordada por um profissional do hotel, comunicando que o senhor gostaria de um contato próximo com ela. Todas as vezes a modelo reforçava que era casada e que não tinha interesse algum no homem.
A primeira abordagem aconteceu logo após sua chegada ao hotel. Em frente à piscina, enquanto gravava stories para seu Instagram, o homem realizava comentários sobre o seu corpo. A segunda e terceira abordagem aconteceu durante o almoço, pelo funcionário do hotel. Na quarta vez, foi mais violenta. “Ele teve a audácia de perguntar quanto era”. Seu namorado a orientou que gravasse a situação para gerar material comprobatório do assédio.
“Eu dormi à noite com cadeiras na porta. Comecei a criar medo na minha cabeça”. Samen relatou o ocorrido aos seus clientes apenas um dia depois, ao se sentir segura durante o trabalho. “Eles ficaram furiosos, imediatamente foram até o hotel, relataram a situação e me deram todo o suporte”.
“A postura do hotel foi péssima, me denunciaram alegando calúnia e difamação”. Novamente comentários racistas e sexistas surgiram em suas redes sociais.
“Não basta apenas ser mulher. Quando é uma mulher negra, a situação toma outra proporção. Não estava com saúde para ouvir esse tipo de coisa, foi muito pesado”.
Segundo Maria Sylvia Oliveira, advogada e coordenadora de políticas de promoção de igualdade de gênero e raça do Geledés, existe um estereótipo da sexualização dos corpos de mulheres negras. Em entrevista à revista Glamour ela afirma que “foi construída a ideia de que as mulheres negras seriam mais fogosoas, ou estariam mais abertas para fazer sexo com qualquer homem. Esses estereótipos foram se cristalizando no imaginário da sociedade para colocar a mulher negra neste lugar de hipersexualizada”.
Samen defende que casos como este não fiquem apenas nas redes sociais. É preciso denunciar. “Os caras tem de entender que eles não podem fazer isso. O que mais me incomodou em toda a situação foi aquele homem se achar tão livre. Ele se sentiu tão à vontade, porque é uma coisa que está acostumado a fazer, mas dessa vez ele deu azar de ter alguém com celular na não e filmar ele”.
Para Maria, as pessoas acreditam ter liberdade sobre o corpo de uma mulher negra, sem sofrer nenhuma impunidade. “A gente acaba sendo colocada dentro desse papel de ser um corpo sexual no mundo e ainda há esse reforço da sociedade que não faz absolutamente nada para a mudança”.
Samen não ficou calada, entrou na justiça com uma queixa criminal e uma ação civil contra o hotel e o indivíduo, ambas ainda estão em andamento.
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Vida e carreira
Samen é natural da cidade de Santa Rosa de Lima, periferia do Rio Grande do Sul, mas hoje, devido à sua profissão, vive no Rio de Janeiro.
O sonho de ser modelo vem desde a infância. “Enquanto eu não virei modelo e comecei a ganhar dinheiro com isso eu não sosseguei”. Com o desejo alimentado desde criança, Semen tinha dificuldades em participar de eventos e workshops relacionados ao mercado da moda por falta de dinheiro. Foi aos 17 anos que começou a participar de concursos e adentrar no mundo da moda. “Nós éramos camelôs. Aquele padrão da família pobre brasileira, a gente tinha de se virar com o que dava”.
Sua carreira começou efetivamente aos 18 anos, após participar do concurso de Rainha do Carnaval da cidade. Novos concursos e, claro, vitórias ficaram recorrentes. O desejo de ser modelo e ganhar dinheiro se tornou realidade. “Geralmente as pessoas têm medalhas, troféus. Eu tenho faixas”.
Quem vê todo o amor da passarela por vezes não tem dimensão das dificuldades enfrentadas. “É uma profissão muito legal, mas é muito difícil. Para nós que somos negras é mais difícil ainda”. Nascida em uma cidade em que 79,23% se autodeclaram como brancas, de acordo com o último Censo em 2010, Samen percebe que hoje “o negro está na moda”. Campanhas em que ela trabalhou na infância traziam apenas uma pessoa negra como símbolo. “Ou era eu, ou outra menina. Quando estávamos no casting, fomos até ‘rivais’ por um tempo, porque sabíamos que era uma ou a outra”. Hoje a proporção mudou: a cada 10 modelos, quatro são negras.
A mulata chegou, e agora?
No início da carreira, pelo deslumbre da profissão e por ser nova nesse mercado, não percebia atitudes racistas dirigidas a ela. “Começamos a ter conhecimento sobre isso agora, com o impulso das redes sociais”.
Samen participou pela primeira vez de um concurso com seu cabelo crespo em 2018. “Eu estava usando megahair”. Estava passando por transição capilar e relembra que perdeu vários trabalhos por decidir assumir seu cabelo natural. “O cliente dizia: ‘a gente quer a negra de cabelo liso’”.
“Foi bem difícil para o mercado do sul me aceitar com o cabelo crespo”. Ainda com todas as dificuldades dos bastidores de concursos, ela considera essa trajetória muito importante para a sua própria identificação como mulher negra. Em 2018, participou do Miss Rio Grande do Sul como manifesto. “Eu fui para lutar. Fui mostrar para as minhas sobrinhas que elas podiam”. Participou do concurso com um megahair black power, mas na noite de véspera da final, colocou tranças. “Chega uma hora que tu sabe que não vai ganhar, então disse: não vou ganhar, mas vou deixar meu nome”. A decisão gerou barulho em duas instâncias: a primeira positiva pela atitude. Porém a segunda, negativa, recebeu diversos comentários racistas nas redes sociais e da produção do concurso.
Apesar do contraponto, o objetivo pessoal foi atingido e a gaúcha deixou sua marca. ”Poder colocar isso na sua história, não tem coroa que pague”.