Geni Núñez: 3 argumentos equivocados sobre a não monogamia

Em sua estreia como colunista do Nós, mulheres da periferia, a ativista indígena e psicóloga Geni Núñez, três argumentos que são equivocados no que diz respeito à não monogamia. "Só realizando esse tipo de identificação é que conseguiremos de fato passar aos debates que realmente poderão somar nessas questões".

14|08|2022

- Alterado em 17|05|2024

Por Geni Núñez

Inicio essa parceria com muita alegria e entusiasmo, contente de participar desse espaço que admiro. Peço licença para me apresentar: sou psicóloga e ativista indígena guarani e um dos meus temas de pesquisa são os impactos da colonização nas relações interpessoais, especialmente a partir de uma perspectiva contracolonial da não monogamia. Muitas pessoas quando veem essa palavra, não monogamia, já se afastam, mas quero reforçar que meus escritos e partilhas não são direcionados apenas a pessoas não monogâmicas. É justamente por compreender que nossa subjetivação se faz necessariamente de forma relacional que busco sempre me sensibilizar para os contextos que a formam.

Ter críticas, discordâncias e estranhamentos com esse tipo de assunto é normal, afinal durante muitos séculos temos sido apresentadas a um único jeito de se relacionar.

O que eu busco no meu trabalho não é convencer, mas construir diálogos e trocas sobre essa temática que sejam construtivos e potentes.

Meu convite neste texto é que continuemos com as críticas e reflexões, elas são fundamentais para o aprofundamento de qualquer debate, mas devem ser feitas de maneira honesta e comprometida. Por isso, para que possamos seguir com essa construção, abordarei a seguir três argumentos que são equivocados no que diz respeito à não monogamia, pois só realizando esse tipo de identificação é que conseguiremos de fato passar aos debates que realmente poderão somar nessas questões.

1 – “Não monogamia é coisa da moda”

Esse é um equívoco bastante comum em muitas pessoas. Nos discursos reacionários, quando uma dissidência é relacionada a algo da “moda”, em geral o que temos é uma tentativa de desqualificação. Isso aparece em falas como “na minha época não existia isso de gays, de pessoas trans” e afins vemos como essa narrativa é uma forma de tentar dizer que aquilo que supostamente veio antes, seria tradicional e portanto mais verdadeiro e justo do que aquilo que teria vindo depois, a pretensa cópia do original normativo. Para além disso, em minha pesquisa, constatei que desde 1500 já temos registro da imposição da monogamia cristã e da perseguição que os jesuítas fizeram contra formas não monogâmicas de se relacionar.

A historiadora Vania Moreira é uma das referências nisso, ela comenta que sem a monogamia não seria possível realizar o batismo e sem o batismo não haveria a conversão, de modo que para que a evangelização fosse feita, foi necessário todo uma imposição da monogamia junto ao racismo religioso que perseguia outras espiritualidades ancestrais indígenas que não servissem ao deus dos colonizadores. Com isso, percebemos que a resistência contra a imposição da monogamia é milenar aqui em nosso território. Não é porque só agora esse debate está recebendo maior visibilidade que isso significa que ele seja recente.

2 – “Sou monogâmico porque só quero me relacionar com apenas uma pessoa”

Esse é outro erro comum. É frequente que se associe tanto a monogamia quanto a não monogamia a uma questão de quantidade, isso é um equívoco. Pessoas não mono também podem se relacionar afetivo-sexualmente com apenas uma pessoa, ou com nenhuma se for o caso. A questão é que apenas ela própria poderá decidir isso. Não há uma terceirização desse tipo de escolha. Não é porque temos a possibilidade de escolher nos relacionarmos com diversas pessoas que necessariamente o faremos. Escolhas também são sobre nossos nãos. Mas um não que seja em primeira pessoa, por seu próprio corpo. Há quem diga que “o combinado não sai caro”, mas a meu ver, nem tudo que é combinado é ético, não é porque duas ou mais pessoas combinam algo que automaticamente isso será uma decisão saudável.

No caso da monogamia, há um “combinado” no qual as duas pessoas prometem exclusividade afetivo-sexual uma a outra, de maneira que quando uma delas quebra essa promessa isso é nomeado como “traição”, como se relações consensuais entre adultos precisassem de autorização de terceiros para acontecerem. Isso é reflexo histórico de um longo caminho de opressões coloniais. Até recentemente era a figura do pai quem deveria “dar a mão da filha” em casamento, como uma transposição de poder.

Escolhas sobre a sexualidade/afetividade só deveriam ser realizadas em primeira pessoa.

Por exemplo: um homofóbico não deveria ter o direito de “escolher” se concorda ou não com a prática de pessoas LGBT, pois isso não é sobre seu próprio corpo. Da mesma forma, ao contrário do que a monogamia nos ensina, não deveríamos ter que concordar ou não, escolher ou não sobre a autonomia afetivo-sexual de outro corpo que não o nosso próprio.

3 – “Não monogamia não é para todo mundo, só beneficia homens e o machismo”

Em minha pesquisa, observei que nos anos em que houve a disputa em torno do divórcio, era muito comum que se dissesse que ter esse direito faria com que a “família brasileira” fosse destruída, que isso só beneficiaria os homens cis que “abandonariam” suas pobres esposas. Discursos muito semelhantes são usados contra a não monogamia. Alguns dizem que homens cis utilizarão desse debate apenas para se relacionarem com mais mulheres. E aqui é importante voltarmos ao ponto anterior: a quantidade de pessoas com que alguém se relaciona não deveria ser um critério moral sobre ela. Se consensual, qual o problema?

Reforço que esse discurso é especialmente violento contra mulheres e outras pessoas dissidentes, que quando são marcadas com a atribuição de “putas/promíscuas” sofrem uma série de violências. A promessa da exclusividade sexual nunca foi exatamente cumprida pelas pessoas monogâmicas, a diferença é que quando essa quebra acontece (ou se supõe seu acontecimento), vemos que a vida das mulheres está em um risco muito maior. Os feminicidas trazem exemplos disso em seus discursos, quando dizem que cometerem esse crime porque “não aceitaram o fim/não aceitavam suas companheiras com outro”.

Enquanto a monogamia se impõe como único modelo válido no planeta, a não monogamia não deve ser vista como um outro modelo, mas como um não modelo.

Como um convite a que possamos construir relações únicas, singulares, que não expressem confiança, respeito, carinho e cuidado pela abdicação da autonomia. Em vez de monoculturas, florestas.

Geni Núñez É ativista indígena, psicóloga, escritora. Mestre em Psicologia Social e doutora no Programa de Pós graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC. É membro da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogos/as (ABIPSI) e co-assistente da Comissão Guarani Yvurupa.

Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.

Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.

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