Mulheres negras com cartazes em manifestação

O dia em que 50 mil mulheres marcharam em Brasília

A Marcha das Mulheres Negras de 2015 foi um momento histórico. Selecionamos depoimentos de mulheres ativistas que estavam presentes naquele ano. Confira!

Por Beatriz de Oliveira

25|07|2022

Alterado em 26|07|2022

Cinquenta mil mulheres negras marchando juntas, em suas diversas belezas, cabelos e tons de pele. Mulheres de todas as regiões do país, reunidas em Brasília, para reivindicar um novo pacto civilizatório, ao mesmo tempo que reverenciavam a ancestralidade. Aconteceu em 18 de novembro de 2015: a Marcha Nacional das Mulheres Negras Contra o Racismo, a Violência e Pelo Bem Viver.

“Para todas nós que participamos lá em Brasília, mesmo para as mais velhas, foi uma sensação inédita de força, ver Brasília enegrecida”, afirma Luciana Araújo, integrante da Marcha e coordenadora de comunicação na Sintrajud (Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo).

As manifestantes partiram do Ginásio Nilson Nelson, onde os ônibus chegaram e algumas estavam acampadas. Percorreram todo o eixo onde fica a Esplanada dos Ministérios. No meio do caminho, tiveram que lidar com grupos acampados que pediam a volta da ditadura militar e o fim do governo Dilma Rousseff. “Hoje a gente pode dizer que eram bolsonaristas, na época a gente não sabia o que era exatamente aquilo, eles vieram para cima da marcha, com ameaças e chegaram a disparar tiros”, lembra Luciana.

Seguiram até a Praça dos Três Poderes, onde havia uma audiência agendada com a então presidenta Dilma Rousseff, a quem entregaram uma carta com as reivindicações do movimento. O documento, entre outras coisas, pede pela garantia do direito à vida, à humanidade, ao trabalho, à moradia, promoção da igualdade racial, justiça ambiental, segurança pública e educação.

“Eu costumo dizer que existe um Brasil antes e depois da Marcha. Embora, todas as mazelas e o governo fascista, se não houvesse a marcha talvez a nossa situação estivesse ainda pior. Porque depois dela, foi impossível continuar com o discurso de sociedade pacífica e não racista. As nossas pautas efetivamente entraram no debate público nacional”, diz a ativista.

O movimento é pautado pelo conceito de Bem Viver, criado pela ativista e engenheira agrônoma Nilma Bentes. Essa visão permite vislumbrar uma nova forma de viver em sociedade, com justiça, equidade e bem-estar, em que as múltiplas existências convivam entre si.

“Nossa concepção de Bem Viver é incompatível com o capitalismo racista patriarcal excludente, que nos engessa em espaços sociais de exploração, subalternidade e marginalidade, e que associa qualidade de vida a consumo”, denunciam as mulheres na carta da Marcha.

A ideia de reunir mulheres negras em Brasília surgiu quatro anos antes do evento, em 2011, durante o Encontro Paralelo da Sociedade Civil para o Afro XXI: Encontro Ibero Americano do Ano dos Afrodescendentes, em Salvador (BA). Em 2014, foram criados núcleos impulsionadores nos estados, para organizar a ida das manifestantes, pensando inclusive na arrecadação financeira. “A gente fez de tudo, vendemos bolo, camiseta, boton, pedimos dinheiro em sindicatos, fizemos cervejada, feijoada, uma série de atividades”, conta Luciana, que fez parte do núcleo de São Paulo.

A Marcha não teve fim em 2015. A partir desse ano, estados como São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo e Minas Gerais passaram a se organizar para marchar em suas localidades. O mês que recebe o evento é julho, normalmente no dia 25, em que é comemorado o Dia da Mulher Negra, Latina e Caribenha. É também o Dia Nacional de Tereza de Benguela, mulher que liderou o Quilombo do Piolho, no atual estado de Mato Grosso. Além da Marcha em si, também ocorrem diversas atividades culturais durante o mês, que fica conhecido como Julho das Pretas.

O Nós, mulheres da periferia, conversou com mulheres que participaram desse dia histórico, no ano de 2015. Confira os relatos sobre a Marcha de Mulheres Negras de 2015!

Luciana Araújo

Jornalista, coordenadora de comunicação na Sintrajud (Sindicato dos Trabalhadores do Judiciário Federal no Estado de São Paulo) e integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

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Luciana Araújo

©arquivo pessoal

“A Marcha reuniu 50 mil mulheres do país inteiro, na mais ampla diversidade que somos nós, mulheres negras. Jovens, idosas, sindicalistas, estudantes, mulheres de Axé, mulheres de outras religiões, militantes de partidos diferentes. Para todas nós que participamos lá em Brasília, mesmo para as mais velhas, foi uma sensação inédita de força, ver Brasília enegrecida. Já era um cenário muito difícil, e acho que a gente foi prova do que estava por vir, o golpe, na violência em que veio.

Eu penso que a marcha tem muito esse significado de um divisor de águas no debate sobre racismo e misoginia no Brasil, ainda que eles estejam longe de acabar. Mas a gente faz em condições muito mais fortalecidas. Seja para nós que construímos a marcha, seja para as organizações e mulheres que vieram antes de nós, e principalmente para as que vieram depois, as nossas jovens. O debate sobre o anti-racismo, combate ao machismo e pelo Bem Viver ganhou outro patamar no Brasil”.

Juliana Gonçalves

Jornalista de formação, militante do movimento negro há 15 anos, é integrante da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo.

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Juliana Gonçalves

©Ponte Jornalismo

“No meio de 2014 eu tive o meu filho, então ele tinha um pouco mais de um ano quando eu fui com ele a Brasília, em novembro de 2015, ele marchou parte do caminho comigo e foi muito significativo.

A gente conseguiu agregar muita mulher, essa beleza de pegar o que nos une enquanto mulheres negras e transformar isso numa pauta política que colabore para emancipação e saúde e respeito de todas. Nunca vou esquecer, foi com certeza a experiência mais emocionante que eu tive nesses anos de militância. Olhar aquela Esplanada de Ministérios e ver tomada por mulheres negras. A gente não conseguia ver o fim no horizonte, havia mulheres negras com seus turbantes, com seus blacks, com as suas tranças, com seus dreads, toda diversidade possível.

Foi sem dúvida a principal demonstração política e organizativa do movimento de mulheres negras na contemporaneidade e que marca a trajetória de todas nós que estivemos nesse processo e as que não tiveram também, porque hoje colhem os frutos da marcha, e do ponto de vista mais político institucional.

Rita Passos

Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional, especialista em Sociologia Urbana e mestra em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais.

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Rita Passos

©Arquivo pessoal

“Ir para Brasília foi um presente, porque a gente conseguiu se articular com outras mulheres negras. Foi muito importante para minha formação enquanto mulher negra, estar junto com aquelas mulheres tão potentes, representantes históricas do movimento de luta pelo nosso empoderamento. Foi muito bonito ver a nossa diversidade, como somos múltiplas, como somos várias, todos os tons de preto, todos os cabelos, todas as histórias. Temos histórias em comum, dores em comum, mas temos uma alegria também que nos une e isso é ancestral.

Ao mesmo tempo era uma fase pré golpe e a gente anunciava isso. Porque quando a gente chega em Brasília, perto do Palácio do Planalto, já estava tomado pelos Patos da Fiesp, teve uma confusão. Éramos uma massa toda formada de mulheres, para mulheres e por mulheres. Não tinha essa tônica da violência. Nossa tônica era o Bem Viver. Mulheres negras marchando pelo Bem Viver, então a gente acusa que tem um golpe em curso.

A Marcha em 2015 selou uma maior unificação entre as mulheres negras de várias regiões do Brasil. A gente às vezes tem dificuldade e fica na nossa bolha territorial. Essa bolha estourou. Quando fomos para Brasília, tivemos uma eclosão de pretitudes, de empoderamento, de femininos, de histórias”.

Tatiana Oliveira

Jornalista do SindSaúde-SP, Doutora em Integração da América-Latina, Professora do Centro Paula Souza, e professora convidada do Celacc/ECA/USP. É co-fundadora da Rede Antirracista Quiolombação e integrante da Marcha das Mulheres Negras de SP.

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Tatiana Oliveira

©Arquivo pessoal

“Eu fui para Brasília alguns dias antes da Marcha para participar do Seminário da AMNB [Articulação de Mulheres Negras Brasileiras], também participei da Sessão Solene em Homenagem a Marcha de Mulheres Negras no Congresso Nacional, realizada dia 17 de novembro de 2015 pela Senadora Benedita da Silva.

Para mim, a ida pra Marcha foi emocionante, participar durante um ano de todo o processo de construção no estado de SP e ver a Marcha em Brasília foi uma grande experiência. Eu fui de avião, mas a grande maioria das mulheres foram de ônibus, encararam muitas horas de viagem e chegaram lá plenas, aguerridas.

A luta das mulheres negras sempre foi fundamental, tanto para o movimento negro, quanto para o movimento de mulheres, o que nos falta é esse reconhecimento. Fora do Brasil as mulheres negras são reconhecidas pelo seu protagonismo e todo histórico de lutas e de incidência na agenda internacional de direitos humanos. Levar 50 mil pessoas para Brasília fez com que as organizações do movimento negro ‘tirassem o chapéu’ para nós”.