Rosario Murillo: a continuidade de um regime que oprime mulheres
Além de perseguições políticas contra ativistas, governo de Ortega-Murillo definiu como ilegais ONGs, associações e outras entidades de apoio social no país.
08|06|2022
- Alterado em 17|05|2024
Por Sâmia Teixeira
No último dia 31 de maio, o governo nicaraguense de Daniel Ortega tornou ilegais 83 ONGs no país. Uma dessas organizações é a Academia de Línguas. Criada em 1928, seu fechamento causou críticas e indignação de cidadãos exilados e ativistas de Direitos Humanos.
Mas o que gostaria de ressaltar sobre essa notícia é que este não é o primeiro “lote”, se assim posso dizer, de organizações colocadas às margens pelo governo da Nicarágua. Desde 2018, em meio a levantes populares contra o regime de Daniel Ortega, cerca de 260 entidades sociais já foram julgadas ilegais pelo Estado.
Dessas organizações, dezenas são grupos de defesa de mulheres, como apontou uma reportagem feita pela Open Democracy (Democracia Aberta, em tradução livre)
Isso inclui a interrupção de serviços de extrema importância para mulheres em vulnerabilidade, como assistência à saúde reprodutiva, ao acolhimento de vítimas de abuso e violência de gênero, programas de educação e outras ações de apoio sociais.
Levando em consideração o número crescente de mortes por motivo de gênero – no primeiro quadrimestre morreram 22 mulheres, vítimas de feminicídio, enquanto no ano inteiro de 2021 foram 71 – essas proibições tornam a situação ainda mais alarmante.
Motivação oficial do governo
O presidente Ortega justifica a onda de criminalização alegando que, por receberem parte do financiamento do exterior, as instituições são consideradas “agentes estrangeiros” no país, utilizando-se de um suposto tom de defesa nacional.
Posicionamento das feministas em relação a Daniel Ortega
Grupos de direitos das mulheres da Nicarágua criticam Ortega há tempos, com polêmicas sérias que envolviam a filha do presidente.
Em 1998, a enteada de Ortega, Zoilamérica Narváez, o acusou de abuso sexual. Enquanto feministas apoiaram a vítima e exigiram justiça, Ortega e sua esposa Rosario Murillo começaram a atacar os movimentos de mulheres, rotulando-as de “assassinas financiadas pelo imperialismo norte-americano”.
Um discurso populista contra o povo
O presidente Daniel Ortega está no poder desde 2007 e conquistou um quarto mandato consecutivo nas eleições de novembro, na base de muita violência e até mesmo com o ordenamento de prisão de seus principais adversários políticos.
Ele que se utiliza de predicação de esquerda, em defesa do país contra interesses neoliberais e ianques, é mais um exemplo de um movimento transformado ao longo dos anos que em seu início trazia coerência, mas que hoje oprime a população.
A metamorfose do Sandinismo
Para entender melhor sobre essa transformação histórica que hoje reflete tão negativamente sobre o povo nicaraguense, pedi a contribuição de uma das principais referências no assunto, Maria Mercedes Salgado, ex-diplomata do governo da Revolução Popular Sandinista no Brasil e doutoranda de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP).
Ela resgata a história deste que foi um movimento revolucionário responsável pela derrubada de uma ditadura assassina de 43 anos, e que tornou-se, com o tempo, exatamente o que buscou combater.
Passado de luta
A FSLN (Frente Sandinista de Libertação Nacional), partido protagonista do levante popular ocorrido na segunda metade do século XX na Nicarágua, tem importância histórica para a América Latina.
Fundada na década de 1960, a FSLN surgiu inspirada em revoluções como a cubana e as de libertação nacional, tendo em seu nome a figura do lutador nicaraguense Augusto C. Sandino, combatente que enfrentou as forças de ocupação dos EUA entre 1927 e 1933.
Mas ao longo dos anos, a revolução tomaria um rumo perigoso. Salgado resgata que passados quase 10 anos de revolução e sob a pressão de uma guerra contra o governo sandinista declarada pelo governo de Ronald Reagan, a FSLN perdeu as eleições de 1990.
“Na oposição, [a frente] dividiu-se em duas tendências em 1995. A que se opunha ao Ortega – liderada por Sergio Ramírez, ex-vice-presidente e a comandante guerrilheira Dora María Téllez, ex-ministra da Saúde – foi expulsa do partido e criou o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), e liderada por Daniel Ortega, que “foi progressivamente tomando o controle das estruturas da FSLN até consolidar sua autoridade absoluta em 2005.”
A partir desse momento, o objetivo de Ortega foi, cada vez mais, o de voltar ao poder, mesmo que, para isso, alianças com forças conservadoras e à direita fossem estabelecidas.
À medida que se tornava um governante cada vez mais autoritário, conseguiu sustentar uma retórica de esquerda enquanto forjava uma estreita aliança com conservadores. Isso até os tempos mais atuais, apoiando, por exemplo, a proibição total do aborto na Nicarágua em 2006.
Escalada opressiva
Em abril de 2018, um levante popular dominou o país, em escancarada rejeição e descontentamento com o governo.
A resposta de Ortega tem sido, desde então, a repressão policial e paramilitar, que deixou até o momento mais 350 pessoas mortas e 2 mil feridas. Dentre os assassinados, conforme relatório da CIDH (Comissão Interamericana de Direitos Humanos), foram 27 meninas, meninos e adolescentes, e 15 mulheres.
Segundo informou Salgado, mais de 1 mil pessoas passaram pelas prisões e aproximadamente 150 mil nicaraguenses fugiram do país em razão da perseguição política ou da crise econômica.
Prisões políticas
Salgado conta que, às vésperas das eleições de 2021, Ortega e Murillo fizeram o Congresso aprovar leis repressivas para criminalizar líderes da oposição, incluindo todos os pré-candidatos à presidência. No momento, há na Nicarágua aproximadamente 180 presas e presos políticos em condições desumanas, incluindo comandantes guerrilheiros destacados na luta contra a ditadura somozista.
“Um deles, o general da reserva Hugo Torres, 70, morreu em janeiro de 2022 em circunstâncias ainda não esclarecidas pelo governo, depois de permanecer preso por 8 meses. Sabe-se que adoeceu devido a tratos cruéis e sua saúde piorou por falta de atenção médica adequada. Suas filhas e filhos permanecem em silêncio, provavelmente por ameaças”, destacou a socióloga.
Outra figura histórica da esquerda, uma das líderes da revolução de 1979 contra o ditador Anastácio Somoza, Dora Maria Tellez, de 66 anos, foi condenada a 15 anos de prisão por “conspiração contra a integridade nacional”.
Campanhas de denúncia
Com a proibição de manifestações, no último Dia Internacional das Mulheres (8 de março), o ativismo digital levantou a denúncia contra a prisão de mulheres militantes, advogadas e defensoras dos direitos humanos opositoras ao regime de Ortega-Murillo.
Uma delas, a ativista Violeta Granera, socióloga nicaraguense, tem enfrentado péssimas condições na prisão de El Chipote. Segundo seu filho, Julio Sandino Granera denunciou à imprensa, sua mãe está magra e em situação desumana. Ele contou que Granera dorme em uma cama de concreto e utiliza uma esteira para se proteger do frio.
Em prisão domiciliar estão a ex-primeira-dama María Fernanda Flores de Alemán e a ex-candidata presidencial Cristiana Chamorro.
Uma ex-parlamentar da oposição, Edipcia Dubón, alertou que as mulheres que estão “injustamente detidas” hoje estão “sob condições terríveis de tortura nas prisões nicaraguenses” e que suas vidas “estão em perigo iminente”.
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Ditadura
Desde Setembro de 2018, o governo de Ortega e Rosario Murillo impuseram todo tipo de restrições às liberdades democráticas. Salgado conta que não é possível nem sair à rua com uma bandeira da Nicarágua, quanto mais se reunir e se manifestar. As polícias fazem vigília nas casas de opositores e opositoras, e ex-presas e ex-presos, impedindo a saída dessas pessoas às ruas ou de seus familiares.
“Qualquer pessoa que expresse sua opinião sobre o governo, deve fazê-lo clandestinamente, do contrário é presa”, exemplificou.
Rosario Murillo: projeto de permanência no poder
Há uma tendência de que a esposa de Ortega assuma o poder. Mesmo sendo mulher, em nada significaria como um avanço para as nicaraguenses. Perguntei então para a ex-diplomata Salgado o que se pode dizer sobre essa figura que, possivelmente, manterá o poder Orteguista no país.
“Creio que era o rumo natural que a família tinha planejado [o de Murillo assumir o controle do regime], mas as revoltas de abril de 2018 colocaram pedras no caminho. O rumor é que ela foi a responsável pelo início da repressão violenta às manifestações de abril [daquele ano de 2018]”, disse.
Salgado explica que ela é a “operadora das estratégias de Daniel Ortega”. “Enquanto ele passa meses sem aparecer publicamente, ela é quem fala com os nicaraguenses todos os dias pela rádio e TV ao meio-dia, numa mistura de voz melosa, maternal e raivosa”, descreveu.
Pelo que Salgado detalha, é uma mulher que “não suporta ser desobedecida ou contrariada, é vingativa, rancorosa e enérgica”, a tal ponto de ter desacreditado e deslegitimado a denúncia formal de sua filha contra Ortega e de tê-la expulsado do país.
A União de Presas e Presos Políticos da Nicarágua denunciou em abril de 2021 que, pelo menos cinco em cada dez presas políticas na Nicarágua, sofrem ameaças e abusos sexuais durante sua permanência nas prisões do país.
Uma delas, Tamara Dávila, viu sua filha de cinco anos pela última vez em 5 de junho de 2021. Um ano sem poder ter por perto uma parte tão importante de si mesma.
Isso em nada impacta Rosario Murillo enquanto mulher. Mas também, que tipo de sensibilidade humana pode-se esperar de uma mãe que prefere acreditar no abusador e não em sua filha abusada?
Eu considero Rosario Murillo a personificação do poder autoritário, que gosta de vestir a manta da moral e dos bons costumes, se esconder por trás de valores religiosos e esotéricos, tal qual vemos na sociedade brasileira – sobretudo no bolsonarismo-, para assim manter a perversidade e a incoerência descaradas contra as mulheres e os mais pobres em todo o mundo.
Minha solidariedade às mulheres nicaraguenses, de dentro e do exílio, às encarceradas e às censuradas, porque todas estão presas até que sejam verdadeiramente livres.
Viva a mulher nicaraguense.
Sâmia Teixeira é mãe de gêmeas e jornalista. Foi assessora da União Nacional Islâmica, onde criou o jornal Iqra. Atualmente integra a comunicação da Rede Sindical Internacional de Solidariedade e Lutas, escreve sobre movimentos sociais e mundo sindical internacional.
Os artigos publicados pelas colunistas são de responsabilidade exclusiva das autoras e não representam necessariamente as ideias ou opiniões do Nós, mulheres da periferia.
Larissa Larc é jornalista e autora dos livros "Tálamo" e "Vem Cá: Vamos Conversar Sobre a Saúde Sexual de Lésbicas e Bissexuais". Colaborou com reportagens para Yahoo, Nova Escola, Agência Mural de Jornalismo das Periferias e Ponte Jornalismo.
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