Mães, professoras, psicólogas e pesquisadoras contam suas experiências nas periferias, discutem o papel dos influencers e a desinformação e compartilham possibilidades de melhoria na qualidade de vida das crianças autistas.
Reportagem: Mayara Penina Edição: Jéssica Moreira
Esta reportagem foi produzido com o apoio de uma bolsa para a produção de trabalhos jornalísticos sobre questões científicas, que foi concedida pela Fundação Gabo e pelo Instituto Serrapilheira, com o apoio da Unesco na América Latina e Caribe.
Atualizado em 02|04|2022
Foi no cotidiano junto ao filho Augustus, de seis anos, que a empresária Elaine Silva, aprendeu o que é autismo. “O autismo é entender a pessoa, entender a criança. É perceber o ser humano, é olhar muito mais o que tem dentro do que do que tem fora.”
Para Elaine, no entanto, a sociedade ainda não está acostumada a conviver e lidar com crianças autistas. “Hoje, se eu vou ao supermercado e o Augustus pega em alguém – às vezes ele tem esses reflexos de querer pegar – as pessoas não entendem”.
Autista, Luciana Viegas é mãe de Luís, um menino autista de quatro anos. Professora de educação inclusiva, ela utiliza as redes sociais para compartilhar como o autismo aparece em sua vida.
“Onde nós, pessoas autistas negras, estamos? Nós estamos nos manicômios, nas prisões”, questiona Luciana, que discute a intersecção entre raça e deficiência na página @umamaepretafalandodeautismo e no movimento Vidas Negras com Deficiência Importam, do qual é uma das idealizadoras.
Luciana foi diagnosticada como autista já adulta, enquanto tentava entender o autismo de seu filho. "Ele que trouxe esse tema para a nossa vida. Eu achava estranho que o Luís se comunicava diferente. E eu ficava vendo que ele não parecia com as outras crianças, não fazia as mesmas coisas que as outras crianças”.
Poliana Martins ocupa dois papéis: é mãe de criança com autismo e divulgadora científica ligada à produção de conteúdo na internet com a página @meubebeoautismo.
“[O autismo] é de uma característica particular mas afeta toda a dinâmica familiar porque aquela criança tem dificuldade com ambientes, com ruídos, com texturas de comida, com com cheiros. Ela também vai ter problemas na comunicação. Às vezes vai ser oralizada, mas fala coisas que não deveria”, reflete Poliana.
Elaine Silva, Luciana Viegas, Poliana Martins e também Luiza Souza e Thamires Santos são mães, mulheres negras e moradoras das periferias brasileiras que convivem com o autismo todos os dias.
São elas que cuidam dos seus filhos e estudam os melhores caminhos para apoiá-los em uma vida plena. Nesta reportagem, elas comentam suas experiências, discutem o papel da comunicação, os perigos ligados à desinformação e a busca por melhoria na qualidade de vida das crianças autistas.
O autismo é entender a pessoa, entender a criança. É perceber o ser humano, é olhar muito mais o que tem dentro do que do que tem fora
Elaine Silva, mãe e empresária
O (TEA) se refere a uma série de condições caracterizadas por algum grau de comprometimento no comportamento social, na comunicação e na linguagem, e por uma gama estreita de interesses e atividades que são únicas para o indivíduo e realizadas de forma repetitiva.
O TEA começa na infância e persiste na adolescência e na idade adulta. Na maioria dos casos, as condições são aparentes já nos primeiros cinco anos de vida.
Os primeiros sinais do Transtorno do Espectro Autista são visíveis em bebês, entre um e dois anos de vida, embora possam ser detectados antes ou depois dessa fase, caso os atrasos de desenvolvimento sejam mais sérios ou mais sutis.
Por volta dos 18 meses já é possível realizar uma avaliação com um profissional especializado, como um neuropediatra ou psiquiatra pediátrico. O diagnóstico do autismo é feito por observação direta do comportamento e uma entrevista com os pais e cuidadores, que pode incluir o teste com a escala M-CHAT, obrigatória nos atendimentos no SUS - Sistema Único de Saúde.
Acho que o que foi pesado não foi o diagnóstico em si. Eu estava preocupada com outras coisas relacionadas ao meu filho. Ele é um menino negro, não oraliizado, dentro da periferia. Isso era uma coisa que me preocupava.
Luciana Viegas, mãe e professora de educação inclusiva
Qual é o caminho? Educação midiática pra gente entender o que é evidência, ciência e o que é modismo. A gente tem que ser sempre duvidoso.
Pós-Doutora em Psiquiatria e Psicologia Médica
Muitas vezes, digitar autismo no Google pode ser fonte de ainda mais angústia. Ao longo deste caminho, desde o diagnóstico até a o acesso a terapias e de busca por inclusão e qualidade de vida das crianças, em quem confiar? O que ler? A quem perguntar?
A ciência é a resposta-chave para todas essas perguntas, já que as pesquisas e estudos realizados ao longo dos anos podem fortalecer políticas públicas, melhorar práticas profissionais e também a qualidade de vida de crianças pequenas, especialmente aquelas em situação de vulnerabilidade.
Embora haja um crescente número de páginas e produtores de conteúdo sobre desenvolvimento infantil, como profissionais, influenciadores e blogueiros, muitos não se baseiam em evidências científicas e acabam gerando desinformação, atrapalhando o processo das famílias.
Para Elaine, não existe material suficiente para famílias autistas que sejam claros e assertivos. “É muito difícil você encontrar algumas informações. Quando tem [algo] na mídia é muito vago, é uma história de superação bonita. E não é essa história de superação bonita que a gente quer buscar”.
Sem dúvida, o amplo acesso à internet e a existência de grupos de apoio e discussão são importantes. Quando as mães ouvem outras famílias em situação parecida, se sentem acolhidas.
A psicóloga e psicopedagoga Karla Cilene viu de perto a positiva relação das mães de autistas com a internet. Ela é fundadora do “Cuida Bem de Mim", que trabalha o autocuidado e saúde mental com mães de pessoas autistas na cidade de Salvador (BA),
"Se a gente for pensar historicamente, esses diagnósticos de autismo têm sido mais frequentes nos últimos anos. Então a gente não tinha muito contato. Hoje em dia, as mães se informam muito pelo Youtube. Eu ficava perguntando quem é que você assistiu. Foi médico? Que médico foi esse?", conta a profissional.
Um obstáculo frequente na busca por informações que esclareçam e ideias equivocadas que partem também dos profissionais de saúde. A Lavinia Teixeira tem Pós-Doutorado em Psiquiatria e Psicologia Médica, pela Unifesp - Universidade Federal de São Paulo, é também bailarina profissional e dá aulas para crianças com deficiência e opina sobre isso.
“A gente vê a mídia colocando pesquisadores renomados, com vários prêmios para falar sobre essas questões. E aí a população leiga acredita porque foi especialista fulano de tal que diz. Só que isso é nível B em evidência. A gente não deve simplesmente confiar num especialista que pode ter feito pós-doutorado em Harvard. É a opinião do especialista. Não é evidência científica. É diferente. As pessoas confundem”, afirma.
A Poliana Martins ocupa dois papéis: ela é mãe de criança com autismo e divulgadora científica e trabalha com produção de conteúdo na internet com a página @meubebeoautismo.
Ela é mãe do João, um menino autista de quatro anos e da Sofia, que tem doze. Mora mora em Belo Horizonte (MG) e faz mestrado em análise do comportamento na UFMG ( Universidade Federal de Minas Gerais). “A minha história de vida, a história da minha família, quem eu sou, as dificuldades que nós tivemos: foi isso que me levou para a academia e para a ciência. É a possibilidade de transformar realidades sociais pelo conhecimento científico que me mantém ali”, conta.
Ela explica que foi no começo da pandemia de Covid -19 que assumiu o lugar de confrontar o que chama de fake science, o conhecimento que é vendido como ciência e não é científico.
Não existe material suficiente para famílias autistas que sejam claros e assertivos. É muito difícil você encontrar algumas informações. Quando tem [algo] na mídia é muito vago, é uma história de superação bonita. E não é essa história de superação bonita que a gente quer buscar
Elaine Silva, mãe e empresária
Eu leio a matéria e sempre vou nos comentário das mães de criança autistas. Aí vejo que aquela resposta me ajudou no aprofundamento daquilo.
Luiza Souza, mãe e diarista
As intervenções psicossociais e programas de treinamento de habilidades para pais, mães e outros cuidadores, podem reduzir as dificuldades de comunicação com impacto positivo no bem-estar e qualidade de vida das crianças.
As intervenções para as pessoas com TEA precisam ser acompanhadas por ações mais amplas, tornando seus ambientes físicos, sociais mais acessíveis, inclusivos e de apoio.
“Augustus tem uma psicopedagoga, uma fonoaudióloga, uma psicóloga e uma neuropediatra. Na escola, ele tem uma uma pedagoga que o acompanha na alfabetização”, enumera Elaine Silva.
É muito popular a adoção das abordagens terapêuticas, a Análise Aplicada do Comportamento (conhecido como método ABA) e Terapia Cognitivo-Comportamental. Frequentemente, as terapias são combinadas com remédios para tratar condições associadas, como insônia, hiperatividade, agressividade, falta de atenção, ansiedade, depressão e comportamentos repetitivos.
“A gente ensina habilidades para as crianças com autismo porque a grande diferença do autismo é a maneira pela qual a pessoa aprende. Aí essa intervenção intensiva acontece nos primeiros anos de vida para ensinar o que a gente chama de repertório básico de habilidades básicas: falar, andar, olhar, imitar", explica Poliana, que faz, ela mesma, as intervenções com seu filho João.
Em 2015, foi sancionado o Estatuto da Pessoa com Deficiência com um capítulo só para o direito à saúde. Ficou assegurada atenção integral à saúde da pessoa com deficiência em todos os níveis de complexidade, por intermédio do SUS. Mas, nem sempre as famílias têm acesso aos seus direitos. É o caso da Thamires Santos, mãe de dois jovens adolescentes, manicure e moradora de Cidade Júlia, zona sul de Sâo Paulo (SP).
“Eu tenho que ficar esperando, a única coisa mesmo que eles têm o acompanhamento é esse pessoal que eu te falei da APD (Programa Acompanhante da Pessoa com Deficiência) que vem toda quarta-feira na minha casa. Só que é meia hora de atendimento. Só este o suporte que tem”.
Há ainda um outro lado da mesma questão, o excesso de medicalização direcionado às crianças ditas “diferentes”. É esta a discussão que a Luciana Viegas propõe. “Eu vou questionar um pouco esse negócio do que o autista precisa”. Ela critica a maneira comum de enxergar o autismo como algo que precisa ser “curado. “Existe uma forma, um método de fazer com que o autista seja menos autista. Na nossa sociedade existe um padrão corpo normativo de se existir. Esse corpo normativo é uma pessoa branca, magra. Para além desse padrão corpo normativo existe um padrão neuronormativo de comportamento".
Por isso, a professora Luciana defende que tratemos o autismo como identidade e que comecemos a responsabilizar o governo por não criar políticas públicas de acesso, inclusão e acessibilidade.
A pesquisadora Lavinia Teixeira trabalha com inclusão de outra maneira, dançando com as crianças e explica como seu trabalho com dança tem trazido resultado na qualidade de vida das crianças com autismo.
“Não utilizo dançaterapia. É aula de dança mesmo, a gente se baseia no balé clássico, e associa isso a algumas técnicas da fisioterapia para promoção de funcionalidade para essas pessoas. A gente faz montagens coreográficas, produção de cenário, figurino, apresentação pública.
Para ela, é fundamental que os profissionais da área de saúde se atentem para o potencial desbravador que as artes, em especial a dança, podem proporcionar na vida social de pessoas com deficiência.
“Não ficar só naquela visão do prática do profissional de saúde é apenas palestras e procedimentos medicamentosos, procedimentos curativos. A gente precisa pensar em outras proposições, utilizar as artes, utilizar o teatro, a dança para que a gente possa desenvolver essa autonomia das pessoas como tá lá na Constituição", diz.
“Uma pessoa que tem autismo ela vai ser sempre vai ter sempre o autismo, a pessoa que tem paralisia cerebral ela vai ter sempre paralisia cerebral. O que que a gente precisa promover pra ela? Habilidades, funções, ser autônoma, ser independente”.
A história destas mães e famílias também foi contada no episódio 59º do podcast Conversa de Portão. Ouça!
É uma deficiência invisível como é o caso do autismo, que continua sendo subdiagnosticados e invisibilizados. Eles acabam acabam nas ruas. Nas cidades, muitas vezes se tornam pessoas em situação de rua e estão aí nas estatísticas de suicídio e de envolvimento com drogas. É isso que acontece com essas pessoas sem suporte do governo. É muito triste, mas é é o destino assim de muitas dessas pessoas.
Poliana Martins, mãe e pesquisadora
Luiza Souza é diarista e mora em Paraisópolis, zona sul de São Paulo. Sem ainda conhecer o autismo e mesmo antes do diagnóstico, ela já sabia e sentia que tinha um filho atípico, o Calebe Gabriel, de três anos.
“Quando o diagnóstico foi fechado, eu não fiquei surpresa, porque eu sabia desde os dez meses. Eu sempre busquei mais a questão do tratamento para ajudá-lo na socialização", conta. “Para o mundinho dele ficar melhor pra ele. Mas eu sempre soube que ele era autista. Ele não aceita contato, nem carinho de pessoas que não conhece e até mesmo de quem ele conhece é bem limitado”, explica.
Em março de 2020, o Centro de Controle de Doenças e Prevenção (CDC) lançou um documento que atualizava a prevalência do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Um ano e nove meses depois, já temos uma mudança de cenário. Cresce cada vez mais o número de diagnósticos de TEA.
Publicado em 2 de dezembro de 2021, o mais recente relatório do CDC mostra que 1 em cada 44 crianças aos 8 anos de idade, em 11 estados norte-americanos, é diagnosticada autista, segundo dados coletados no ano de 2018. O texto original do estudo, em inglês, está disponível no site do CDC.