A vida de quem procura familiares: “mil vezes pior que a morte”

Familiares de pessoas desaparecidas, em especial as mães, sofrem impactos na saúde mental e na vida financeira. País tem lei que determina política para busca de pessoas desaparecidas

Por Beatriz de Oliveira

11|10|2021

Alterado em 13|10|2021

“Ninguém tá preparado para conviver com uma tragédia como o desaparecimento. Eu falo como mãe, que procuro pela minha filha há quase 26 anos. Há 25 anos e 9 meses”. A fala é de Ivanise Esperidião, criadora da ONG Mães da Sé, que atua na busca por pessoas desaparecidas.

Em 1995, a filha de Ivanise, Fabiana Esperidião, desapareceu. Ela se junta a outros milhares desaparecidos de São Paulo. O estado foi o que registrou maior número de desaparecidos em 2019, foram 21.122 segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. No país foram registrados quase 700 mil Boletins de Ocorrência (BOs) de pessoas desaparecidas entre 2007 e 2016.

Parte dos desaparecimentos se dá em contexto de violência, como aponta Alexandre Formisano, chefe da Delegação Regional do Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV). Referindo-se a uma situação global, ele diz que “depois de situações de violência, muitas vezes tem números importantes de pessoas que desapareceram” e acrescenta “e atrás deles tem toda uma família que está procurando, que não tem notícias, que não sabe o que aconteceu com seu ente querido”.

Para Ivanise Esperidião, a situação do desaparecimento é “mil vezes pior que a morte”. Isso porque o familiar não sabe se seu ente querido está vivo ou morto, em situação precária ou com fome, por exemplo. “A sua vida vira uma interrogação”.

Ela menciona também que a pessoa mais afetada na situação é a mãe do desaparecido.

“Quem vai pra rua, quem vai para os hospitais, quem vai para os IMLs, quem vai para a delegacia é a mãe”, diz. Comenta ainda que os outros familiares se acostumam com a ausência do desaparecido, o que não acontece com a mãe.

Quando a vida vira de cabeça para baixo 

“A primeira sequela que ele [o desaparecimento] deixa para a mãe é o desequilíbrio emocional” afirma Esperidião e cita casos de depressão. “Eu cheguei a beira da loucura”, desabafa, pois não aceitava ficar sem respostas sobre sua filha. A ONG Mães da Sé oferece, por meio de parceria, atendimento psicológico às mães atendidas.

Além do lado mental, o físico também é afetado. Esperidião comenta que muitas mães que atende desenvolvem problemas de saúde após o desaparecimento do filho, principalmente ligados ao coração. Menciona também problemas de memória.

Outro atendimento necessário para alguns familiares de desaparecidos é o jurídico, algo que a ONG também oferece. Tendo em vista essas e outras questões, um relatório do CICV sobre as necessidades de familiares de pessoas desaparecidas recomenda que as autoridades brasileiras criem centros de referência para pessoas desaparecidas, de modo a atender as necessidades desse público.

Mais uma consequência para os familiares ocorre nas finanças pessoais. A busca pelo ente querido demanda recursos para transporte e impressão de cartazes, por exemplo. Há casos em que o familiar deixa de trabalhar para se dedicar exclusivamente à busca. Esperidião relata que saia de casa todos os dias a procura de sua filha, usando transporte público. “A sua vida financeira também fica desestruturada”, conclui.

Nesse sentido, o CICV recomenda ao poder público que se ofereça a garantia de benefícios de assistência social aos familiares. Bem como a criação de protocolos de orientação de familiares de pessoas desaparecidas sobre educação financeira.

As mães nessa situação lidam também com a falta de compreensão. Ivanise conta que ouvia comentários sugerindo que sua filha havia fugido com algum namoradinho, por exemplo. A incompreensão vem também do próprio núcleo familiar, sua outra filha chegou a reclamar que ela se dedicava apenas a Fabiana Esperidião. Depois que se tornou mãe, pediu desculpas à Ivanise, “porque ela entendeu a grandiosidade que é o amor de mãe”.

Governo negligente 

Para quem se depara com a situação de ter um familiar desaparecido, a primeira ação a ser tomada é verificar se há registro da pessoa desaparecida nos órgãos de emergência. Depois disso, se recomenda registrar um BO do desaparecimento. Procurar apoio na busca e divulgar o desaparecimento são outras orientações que constam em um guia da Prefeitura de São Paulo.

No nível federal, existe a Lei nº 13.812, que institui a Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas. O texto, que é de 2019, prevê o desenvolvimento de programas de inteligência para a investigação de casos de desaparecimento, bem como divulgação em diversos meios. Essas e outras ações descritas visam que “a busca e a localização de pessoas desaparecidas são consideradas prioridade com caráter de urgência pelo poder público” como define o artigo 3º da lei.

Não é o que ocorre na prática, conforme relata Ivanise Esperidião. Ela define o governo como ausente, omisso e negligente no tratamento a esse tema. Segundo ela, a Delegacia de Polícia de Investigação de Pessoas Desaparecidas é “totalmente desestruturada”. Na capital há uma delegacia desse tipo, que não consegue dar conta de toda a demanda, como avalia Esperidião.

Ela comenta ainda que não há uma busca contínua por parte do governo, e que ocorre dos casos serem arquivados por falta de elementos, sem aviso aos familiares.

No relatório já mencionado, o CICV recomenda que o país estabeleça um mecanismo nacional para tratar o tema de pessoas desaparecidas e dos seus familiares.