Casa Ser: saúde sexual e reprodutiva é direito de todos
Reportagem visitou Casa Ser, na Cidade Tiradentes, único centro dedicado exclusivamente à saúde sexual e reprodutiva em São Paulo.
Por Redação
10|08|2021
Alterado em 26|08|2021
* Por Beatriz de Oliveira e Pedro Valota
Uma mulher trans e uma enfermeira protagonizam uma cena de afeto. Numa conversa de mais de 40 minutos, a primeira conta sobre sua vida e chora. No fim do acolhimento, a mulher fica sem coragem de ir embora. Sua maquiagem saiu e as pessoas do lado de fora vão te julgar. Quando escuta isso, a profissional da saúde tira o seu batom da bolsa e entrega para a mulher, diz que ela está linda e que iria de mãos dadas com ela até a porta da unidade.
A cena foi contada pela enfermeira Mineia Ribeiro e ocorreu na Casa Ser – Centro de Atenção à Saúde Sexual e Reprodutiva Maria Auxiliadora Lara Barcelos, que leva o nome de estudante de medicina e guerrilheira que lutou contra a ditadura militar.
A Casa Ser, localizada na Cidade Tiradentes, zona leste da capital paulista, foi inaugurada em 2003 por meio de parceria entre a Secretaria Municipal de Saúde, Subprefeitura da Cidade Tiradentes, COHAB e Consulado do Japão e oferece serviços relacionados à saúde sexual e reprodutiva da mulher.
Além disso, em fevereiro de 2020 a instituição se tornou referência na hormonização voltada para a população trans, que se baseia na aplicação de hormônios masculinos ou femininos. Durante o mesmo ano foram realizados 74 atendimentos para pessoas trans.
Nessa vertente, a psicóloga Célia Melo destaca que em primeiro lugar se realiza o acolhimento desse público, visando conhecer a história de cada paciente. “Eles [população trans] trazem muito histórico de violência”, pontua. Depois disso, se orienta para consulta com ginecologista e psicóloga. Segundo um mapeamento realizado em janeiro de 2021 pela Secretaria de Direitos Humanos, 43% da população trans de SP sofre violência nas ruas e escolas.
Espaço decorado na Casa Ser em referência ao mês do
orgulho LGBTQIA+
Métodos contraceptivos, coleta de Papanicolau, testes rápidos de sífilis, HIV, hepatite B e C estão entre os serviços oferecidos pelo centro de saúde sexual e reprodutiva. A enfermeira explica que são realizados atendimentos pontuais, ao passo que os de rotina devem ser encaminhados para as UBS. “Aqui não é UBS, é um serviço especializado”, resume. Há ainda grupos e oficinas sobre planejamento familiar, sexualidade e menopausa. “É muito importante essa mulher entender como é que o corpo dela funciona”.
Uma vida sexual prazerosa e segura é objetivo da promoção da saúde sexual e reprodutiva, bem como a opção de decidir se quer ter filhos, o que ocorre por meio do acesso à informação e aos métodos contraceptivos. “É garantir à população uma relação sexual protegida e capacidade de planejar a família”, explica Mineia.
Mariana Arantes Nasser, médica sanitarista que atua no Laboratório de Saúde Coletiva no Departamento de Medicina Preventiva-UNIFESP, esclarece que “quando a gente fala em saúde sexual e reprodutiva, a gente não fala só em mulher, mas sim de todos os grupos e idades”. Destaca, ainda, que a discussão sobre o tema surgiu a partir de reivindicações do movimento feminista.
A médica aponta também que os variados serviços nessa área devem ser oferecidos na atenção básica por meio das Unidades Básicas de Saúde (UBS) – os postinhos de saúde, como são popularmente conhecidos. Por meio de nota, a prefeitura informou que em relatório de gestão pactuado em 2021, “serão implementadas capacitações em 100% das 468 Unidades de Saúde no atendimento ao Planejamento Familiar, à medida em que o atendimento prioritário Covid-19 e vacinações forem entrando na normalidade”.
A partir de sua tese de doutorado “Avaliação da implementação de ações em saúde sexual e reprodutiva desenvolvidas em serviços de atenção primária à saúde no estado de São Paulo”, Mariana verificou que as ações relacionadas a esse tema não têm o desempenho ideal e precisam de melhorias. Ela pontua que não pesquisou as UBS do município de São Paulo, pois se restringiu às cidades de pequeno e médio porte. Apesar disso, acha provável que o cenário se repita na capital.
De acordo com a médica, os preconceitos que existem em torno da questão da saúde sexual e reprodutiva prejudicam a implementação de ações. “Existe uma carga moral que a gente acredita que dificulta dele estar mais amplamente difundido”, disse.
Por meio de sua pesquisa, verificou ainda que as ações ligadas a parte reprodutiva são as que mais funcionam na atenção primária, o que inclui o planejamento reprodutivo, pré-natal e cuidado puerpério imediato. Nessas ações “o foco não é bem a mulher e sim a criança”, diz Mariana, e acrescenta, “é o controle do corpo feminino para proteger a criança”. Constata ainda que os serviços para evitar a gestação tem menor foco nas UBS pesquisadas.
Saúde Sexual é direito de todos
Desde setembro de 2019 a gestão da Casa Ser é feita pela Casa de Isabel, uma Organização Social de Saúde (OSS). A gerente de serviço, Marine Pacheco, revela que a entidade foi chamada para “resgatar a essência da Casa Ser”, pois com o tempo os atendimentos diminuíram.
Nesse contexto, o resgate de essência acontece precisamente através dos atendimentos – que por vezes se tornam únicos. A estudante de Relações Internacionais, Thalyta Domingues, conheceu a Casa Ser justamente em setembro de 2019 (quando a OSS Casa de Isabel assumiu o local), após ser direcionada para a instituição por um Centro de Saúde. “Eu precisava ver como estava o meu DIU e então me encaminharam para a Casa Ser”.
Thalyta aponta que o atendimento em sua primeira vez foi perfeito e que eles [funcionários da Casa Ser] entendem o tipo de população que estão lidando. “São super atenciosos e realmente se importam com as pessoas que estão ali”, disse.
Por outro lado, a estudante pontua que “por estar na periferia, o acesso à educação, principalmente sexual, é extremamente restrito” e que por isso é muito importante ter esse tipo de serviço disponível. “Nós aqui não temos acesso a um plano de saúde. Na Casa Ser, ao mesmo tempo que temos os procedimentos em si, temos a informação. Isso é muito válido para a população periférica”, afirma.
De acordo com levantamento realizado em abril de 2020 pela Rede Nossa São Paulo em parceria com o IPEC – Inteligência em Pesquisa e Consultoria, cerca de 70% da população paulistana não possui plano de saúde.
Conforme afirma Marine, a Casa Ser é o único espaço da cidade voltado exclusivamente à saúde sexual e reprodutiva, e por isso atende toda cidadã que busca por um serviço – não somente os moradores da Cidade Tiradentes. A prefeitura explica que “a porta de entrada das mulheres para a linha de cuidado em Saúde da Mulher é a Unidade Básica de Saúde”.
Para a médica Mariana, não é válido existir um espaço especializado, pois o local não consegue atender todas as demandas. Ela defende a implementação de ações de saúde sexual e reprodutiva nos postos de saúde, por ser de fácil acesso aos moradores, já que estão disponíveis nos bairros.
“Quando uma coisa é direito, tem que fazer para todo mundo. Se fazer em um lugar só, as pessoas nunca vão chegar lá”, afirma e contesta, “é como se fosse uma falsa ideia de que tá fazendo alguma coisa”. A médica afirma, ainda, que com um maior número de espaços como esse, um em cada região da cidade, por exemplo, seria necessário um sistema de regulação para definir os encaminhamentos das UBSs.
O atual Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo prevê que, dentre outras coisas, seja garantido em todos os distritos serviços públicos na área da saúde. De modo mais específico, há o Plano Municipal de Políticas para as Mulheres, que ficou vigente entre 2017 e 2020, e no eixo de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos indica como objetivo geral “promover o respeito aos direitos sexuais e reprodutivos e o cuidado integral à saúde das mulheres, considerando sua diversidade, em todas as fases do ciclo de vida”.
A gerente de serviço conta que no mês de junho foram realizados 1500 atendimentos na Casa Ser, os quais não contabilizam os outros dois serviços existentes no local, de ultrassom e do centro de práticas naturais. São 17 funcionários, que relatam que a divulgação do serviço é em maior parte no “boca a boca”.
Antes da pandemia, foram até a feira que acontece perto da Casa Ser para informar aos cidadãos sobre os atendimentos oferecidos. A prefeitura indicou que no ano passado 22.607 mulheres foram beneficiadas com a inserção dos LARCs (contracepção de longa duração).
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