Racismo institucional: trajetória de uma trabalhadora negra
"A dinâmica do processo racial é fazer o negro acreditar que o problema é sempre dele, que os seus problemas pessoais justificam seu baixo desempenho profissional"
Por Redação
17|08|2021
Alterado em 08|09|2021
Essa carta não tem como objetivo responsabilizar diretamente ou indiretamente um trabalhador, mas trazer o racismo institucional como consequência nas relações do trabalho, dizendo que ele existe, que incomoda e adoece quem sente.
Ingressei nas Instituições Públicas como trabalhadora, compreendendo que existia essa categoria de igualdade entre o conjunto de trabalhadores, a identificação como negra se dá na estrutura institucional, que determina até onde posso transitar, falar ou estar.
Por não sermos um grupo marcado pela diversidade no campo do trabalho, sempre sendo exceções, o debate sempre se mantém de maneira esvaziada, visto como ofensa, mimimi, como se fosse um xingamento, um tabu a ser quebrado.
A quebra do silêncio por muitas vezes responsabiliza o indivíduo que vive as expressões racistas nestas Instituições, sendo interpretado pelo grupo, como o injusto, problemático, invejoso, ou atrevido em desmoralizar os colegas e a Instituições empregadoras.
Reivindicar esse lugar de fala é cutucar o câncer em metástase que se alastra em toda sociedade brasileira, visto que, além das desigualdades sociais, assumido como projeto de sociedade, ainda se reafirma com aniquilamento das vidas negras.
Todos os indicadores sociais apontam para um padrão consistente de vulnerabilidade social de negras e negros neste país, seja no mercado de trabalho, no acesso à educação formal, no acesso à moradia, à terra ou à justiça. O relatório global sobre a igualdade no trabalho , de 2011, aponta que embora seja 45,5% da população ativa para o mercado de trabalho totaliza 50,5% de desempregados.
Outro indicador importante, o perfil das 500 maiores empresas do país traçado pelo Instituto Ethos, mostra que quando maior o nível hierárquico, menor a possibilidade de negros no quadro de direção. Em 2010, negros representavam 5% dos executivos e 13% dos gerentes da 500 maiores empresas. A mulher negra segue sendo a última da fila depois de ninguém. Elas simplesmente não existem, representam apenas 0,5% dos cargos de chefia ou gerência.
Se há consequências racistas das leis, das práticas ou dos costumes institucionais, a instituição é racista, independentemente do fato de os indivíduos que mantêm tais práticas terem ou não intenções racistas.
Considerado crime a descriminação resultantes por raça ou cor, Lei 12.735 ainda no Brasil temos ausência de mecanismos de defesa para os trabalhadores que sofrem o racismo , sendo categorizado muitas vezes por assédio moral , ou problemas de comportamento da pessoa. Os sindicatos, Conselhos afins ainda não incorporam isso como tema a ser discutido para um enfrentamento nestas Instituições.
Falar do racismo é também cutucar uma branquitude mestiça brasileira, que teve privilégios em detrimento aos negros, pelo sonho do projeto de um Brasil branco, eurocêntrico, estão aí os indicadores para provar isso, morte e pobreza neste país tem classe, cor e gênero.
As crianças negras têm sua infância roubada, os jovens encarcerados ou mortos pela polícia, e mulheres negras nem são vistas e consideradas como gente.
A branquitude à moda brasileira pode sentir-se como gente: sentir dor, ficar doente, ter problemas familiares, ser classe trabalhadora, acesso às universidades públicas ou privadas, viagens, ter amigos, rede familiar, ter o direito de transitar e não ser parado pela polícia, e, principalmente, de sonhar com um mundo melhor para seus filhos.
O braqueamento se deu em toda estrutura brasileira como forma de apagamento da história do negro e de povos indígenas. A estética branca (cabelos lisos, traços finos e corpos brancos e magros), modos de etiquetas eurocentradas são a única forma de ser nessa sociedade.
Quem quer ser negro no Brasil ? Nem pessoas de peles claras e nem pessoas negras querem o lugar da opressão e humilhação. Por isso uma negação pelos seus traços, cabelos e corpos escuros.
Negar a contribuição do negro e indígenas no Brasil é negar nossa existência como humanos, ser lembrado pelo samba, feijoada, adereços , é o nosso lindo sorriso , não é o mesmo de aceitar o nosso lugar de fala e a nossa contribuição no processo de construção de um sociedade mais justa. Por isso reivindico esse lugar.
Como explicar a falta de representatividade nas Instituições de poder, na televisão, nos consultórios médicos, nos diversos setores da sociedade, sempre vistos nos lugares de servidão (empregos domésticos, segurança do prédio, garçom) ou atrás das Instituições fechadas de encarceradas ou serviços da Assistência Social de alta complexidade, ou no recebimento de uma cesta básica para alimentar seus filhos.
Não acreditam que essa população precisa ter um trabalhador que levante essa bandeira, que garanta que essas Politicas repensem em outros modos operantes? Somos quase 55% da população, sendo quase na sua maioria sendo usuários frequentes das politicas públicas de modo precarizados.
Os alemães têm um sentimento de vergonha e desprezo pelos seus antepassados nazistas pelo crime contra os judeus, considerado “um crime contra a humanidade”. No Brasil o extermínio de indígenas e o regime escravagista é comemorado como harmonia falaciosa de um povo brasileiro.
Discutir o racismo de um lugar de privilegio e reduzir a causa, como um problema específico do negro, e não como causa estruturante de um processo de desigualdades sociais a ser combatido por todas e todos, brancos e negros.
Falar disso, e a quebra do mito da falsa “Democracia Racial ” que vela nos tapetes da sala, na educação desta futura geração que todas e todos somos iguais, desde que pessoas estranhas não ocupem as Instituições consideradas de poder.
Servidora Pública
Ingresso nas Instituições em 2008, furando a bolha da estatística e ocupando um cargo público. Estávamos num cenário da reestruturação da pasta, por isso ficamos no último andar da Secretaria (gabinete).
Mas logo fomos convidados para nos retirar sendo que aquele espaço não era para os novatos. Percebi que era um espaço de gente esteticamente consideradas bonitas e com perfil de civilizados, e não negras. Hoje percebo que essa estrutura não se diferencia de outras instituições públicas, a não ser que uma pasta de maior poder financeiro será majoritariamente dominada por homens.
Eu estava nesta ocasião encantada, me achava a pessoa mais inteligente do mundo em conseguir entrar na Instituição que os meus professores davam aula, era o máximo pra mim.
Por outro lado o salário que receberia mal pagava minhas contas, fora a mudança que acabava de fazer. As dívidas se -acumulava, nome no SPC , ir trabalhar é deixar uma filha pré-adolescente sozinha, numa cidade desconhecida e voltando tarde da noite.
Mas entendia que estava fazendo a coisa certa, que logo teria outras oportunidades de crescimento, pois tinha experiência profissional de outros lugares e tinha certeza que alguém viria minhas habilidades e vontade de trabalhar.
Eu uma pessoa muito falante procurava sempre falar para todas que podiam me enxergar, eu queria para além do dinheiro ser vista como gente, alguém que buscava uma oportunidade de crescimento dentro de um espaço de trabalho.
As frustrações começaram a surgir desde o ingresso, quando observava que colegas eram convidados para assumir cargos nesta estrutura, por coincidências pessoas não negras.
Um sentimento de fúria, raiva e desespero começava surgir em mim , um velho sentimento conhecido por nós negros: exclusão, subalternização, isolamento, tristeza, inferioridade, revolta.
As expressões racistas e brincadeiras recreativas com estereotipo periférico e negro também era muito comum e naturalizadas no espaço cotidiano do trabalho. “Negra do cabelo duro que não gosta de pentear “, “ piscinão de ramos”, “chinelo havaiana “, “Buiu“, “A coisa tá preta“, “negro safado” .
A dinâmica do processo racial é fazer o negro acreditar que o problema é sempre dele, que os seus problemas pessoais justificam seu baixo desempenho profissional. Então sempre tive que assumir como lema o ditado “mãos à obra” , e não sou caranguejo pra voltar pra trás, então buscava estudar, ser a melhor mãe, ser a melhor servidora pública, ser a melhor amiga, ser a melhor…
A cobrança comigo era imensa, além disso, uma postura de autoafirmação para ser reconhecida pela equipe, uma necessidade imensa de mostrar que eu existia , levando vários rótulos que até hoje coleciono nesses dez anos “sem perfil “, agressiva , violenta , se faz de vítima , chata, a dona da razão, soberba, ou de uma forma mais sensível “ ela é assim , mas é batalhadora”.
Poucas pessoas nesse processo conseguiram perceber todo meu sofrimento e potencial, e ter coragem de me dar a mão, um acalanto, ser parceiro. Sim, é preciso ter coragem para expor uma relação com uma pessoa negra. Por isso é comum os não convites para festas e casamentos, hoje consigo compreender esta solidão como marca fundante do racismo velado a modo brasileiro.
O adoecimento mental do negro é um conjunto de fatores na sua vida pessoal, somando com sua vida profissional, marcado por situações vexatórias, exclusão, isolamento e negligência das instituições e gestão no âmbito do trabalho.
Como, por exemplo, atender uma situação urgente com um filho, gerará uma bronca da chefia, gerando duplo sentimento, uma pela escolha de quem priorizar primeiro. Um sofrimento que o trabalhador carrega em toda sua vida, isso se não ter um afastamento por um possível adoecimento.
Qualquer pessoa se sente no direito de colocar em cheque o profissionalismo deste trabalhador(a), sendo o tempo todo monitorado nas suas condutas éticas, não como proteção ou mesmo orientações, mas como forma de adequação aos acordos da Instituição/gestão.
Hoje compreendo que tenho um valor imensurável dentro destas Instituições, possibilito mudança, sou quente, sou vulcão, as vezes as larvas são lançadas como meio de dizer que não aguento mais.
Transformei toda essa dor em causa, em possibilidades de possíveis emancipações humanas com a minha experiência de vida, não utilizo isso como mecanismo de exibicionismo, mas sim de ser reconhecida, acolhida, legitimada como ser humano e trabalhador.
Não sou boa na arte, na dança, no samba e nem na faxina, como tradicionalmente os negros são aceitos, não desmerecendo isso como maneira de trabalho digno, mas quis ser audaciosa e ser Assistente Social de profissão, construtora de politicas públicas.
Busquei por muitas vez me encaixar no perfil institucional, terapia durante anos, para baixar o tom de voz, mudar a forma de andar e de agir , moderar mais , saber utilizar os argumentos porque só assim talvez teria direito a voz.
Nem assim fui considerada a trabalhadora com perfil para assumir cargos ou espaços de poder. Ao mesmo tempo a minha vida pessoal dependia de uma ascensão financeira para que a minha filha não experimentasse o gosto amargo das barreiras do racismo. Para isso tive que correr outra vez a uma vaga num outro concurso público, obvio que passei como era de esperar, visto que piso em chamas com os pés descalços.
Aprendi que posso chegar a uma reta final sozinha, mas talvez não dê conta das feridas abertas que ali ficaram. Hoje tento curá-las. Por isso escrevo essa carta, talvez com ela consiga essa libertação, sair do açoite. Talvez falar de mim é falar de outros trabalhadores negros e negras num canto qualquer.
“A cuca vai te pegar se você abrir a porta“, era assim que os patrões da minha mãe, utilizam como meio de impedir meu corpo negro na casa grande, como forma de dizer onde era o meu lugar . Não quero uma casa grande, mas sim um lugar possível de estar e transitar .
Demorou dez anos para eu falar ou escrever , pois talvez o meu lugar de fala dentro dessas instituições quando se aborda o racismo , precisa ser por meio de uma carta , porque já sei dos argumentos comuns do “ mito da democracia racial “ : “ Somos todos iguais “, “ Vocês negros que se sentem inferiorizados “, “ Vocês utilizam do racismo para não lidar com problemas individuais “, “ Eu te acho uma pessoa muito guerreira , mas acha que é dona da verdade “, “ Você é soberba”, “Você se coloca no lugar de vitima ”, “ Eu trato todo mundo de maneira igual” , “ Eu também já sofri preconceito por ter o nariz grande” , “ A minha vida também não foi nada fácil, os meu pais eram operários “
Por meio de comentários comuns e corriqueiros aos nossos ouvidos, vamos compreendendo o lugar que o negro é compreendido no imaginário da sociedade brasileira. Consequentemente um silenciamento em nossos postos de trabalho, e não tratar o assunto com respeito é honestidade.
Falar e ser ouvido talvez seja o único marco civilizatório nisso tudo, a minha única crença, não penso que os negros vão dominar o mundo, ou que somos inimigos, temos pontos de partidas diferentes como existência humana, por condição de classe, gênero e raça, isso sim precisa ser compreendido para uma possibilidade de construção coletiva e antirracista .
Flávia Ribeiro, Mulher, mãe, periférica, trabalhadora e negra.
Escreva para o Nós!
Preencha este formulário e nos envie seu texto!
Leia mais:
Apoie o jornalismo independente feito por mulheres, apoie o Nós. Acesse catarse.me/nosmulheresdaperiferia para nos apoiar.