Li “Torto arado” e me reconheci quilombola
"Sua leitura me emocionou e me fez viajar no tempo, um tempo que não vivi, mas que me constitui". Confira relato da jornalista Lívia Lima.
Por Lívia Lima
16|06|2021
Alterado em 15|09|2021
Eu nasci na cidade, mas não venho dela. Sou filha de migrantes das veredas de Minas Gerais que, assim como muitos de nós, vieram para São Paulo em busca de melhores condições de vida, sobretudo entre as décadas de 50 e 70 do final do século 20. Esta fase da história brasileira permeia o fim do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior (Todavia, 2019). Sua leitura me emocionou e me fez viajar no tempo, um tempo que não vivi, mas que me constitui.
A obra do escritor baiano narra a história de uma comunidade rural da região da Chapada Diamantina a partir de duas personagens, as irmãs Bibiana e Belonísia, cujas vidas são atravessadas por experiências de uma população negra, descendentes de escravizados, que, sem direito à terra, sofrem as mais diversas dificuldades e humilhações diante da opressão daqueles que supostamente tem o direito à propriedade – os donos da Casa Grande.
O nível do detalhamento das paisagens, do cotidiano daquele povo ao longo de toda a narrativa de Itamar é tão envolvente e cativante que nos faz adentrar naquele universo simples e rural, como se estivéssemos também nós vivendo aquela rotina. O cultivo da terra, dos arados tortuosos, a preparação dos alimentos, foram para mim uma espécie de reconhecimento das minhas origens, me senti revivendo um passado que não me foi relatado, mas que segue em minha memória ancestral, no meu gosto e apreço em preparar a batata-doce, a abóbora, a mandioca. Me reconheci ali também quilombola.
Na infância, felizmente eu tive a oportunidade de retornar diversas vezes à terra que pertenceu aos meus avós. Era o destino das nossas tradicionais viagens de férias. O nosso lugar preferido, onde brincávamos livremente, andávamos de cavalo, colhíamos manga do pé, brincávamos nas águas do córrego São Gregório. As descrições do território de Torto Arado, das casas de barro, me vinham na mente como fotografias daquele sítio, da terra que nutriu minha família.
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Ainda que eu tenha crescido na cidade, e tido uma experiência basicamente urbana, eu nunca deixei de pertencer à terra, assim como as personagens do livro se afirmam. Com a maturidade, assim como Bibiana e Belonísia, minha irmã e eu também estamos cada vez mais próximas da terra, seja no cultivo de flores e hortaliças no quintal, até mesmo no cuidado com uma alimentação mais natural e saudável. Que sigamos em defesa da memória de nosso legado ancestral.
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