Colômbia: a força que vem das mulheres e jovens contra a violência
Há quase um mês, a Colômbia vive uma série de manifestações contra o atual presidente, Iván Duque e sua política de ampliação de impostos. A violência estatal é uma das marcas das manifestações. A especialista em Colômbia, Amanda Harumy explica como isso se relaciona ao Brasil. Confira!
Por Jéssica Moreira
24|05|2021
Alterado em 24|05|2021
“É inaceitável que uma mãe perca seu único filho para a brutalidade. E que outras 18 pessoas percam suas vidas em um protesto pacífico. As balas jamais poderão silenciar a voz de quem sofre. E é imprescindível que não sejamos surdos diante do clamor dos nossos. Peço ao governo do meu país que tome medidas urgentes, PARE JÁ com a violação dos direitos humanos, restitua o valor da vida humana acima de qualquer interesse político”.
Es inaceptable que una madre pierda su único hijo a causa de la brutalidad.
Y que a otras 18 personas se les arrebaten sus vidas en una protesta pacífica. (1/3) pic.twitter.com/Ujwq0yjU2X— Shakira (@shakira) May 4, 2021
A fala acima é de uma cantora muito conhecida por todas nós: Shakira. A cantora colombiana postou essa mensagem em 3 de maio, quando a repressão policial em seu país tomou proporções drásticas, com o assassinato de ativistas, que estão nas ruas desde o dia 28 de abril.
A juventude colombiana está lutando contra o governo atual, do presidente Iván Duque, e a violência policial. Um projeto que previa o aumento de 19% dos impostos sobre serviços públicos, como gás e energia, foi o grande estopim para o início das manifestações, já que a proposta afetaria principalmente os setores mais pobres.
A reforma tributária foi retirada da pauta. Caso fosse aprovada, a reforma tributária chegaria a arrecadar COP 25,4 bilhões de pesos colombianos, o que equivalia no começo do ano a mais de US$7 milhões de dólares. Organizações de base chamaram uma grande manifestação em 28 de abril, conhecidas como jornadas da Greve Nacional.
Desde o início dos protestos, há 2.905 casos de violência policial, sendo 855 vítimas de violência física, 43 homicídios e 21 vítimas de violência sexual. Os dados são de 21 de maio e são atualizados diariamente pela ONG Temblores, que luta por direitos humanos no país.
Uma reportagem do El País mostra quem são as mães que estão protegendo seus filhos da violência policial. São as Mamás Primera Línea (Mães Linhas de Frente), que com seus escudos improvisados de madeira apoiam as criam contra a repressão.
São mulheres que estão defendendo seus ideais e de seus filhos e filhas com o próprio corpo. “Exigimos coisas mínimas: direito ao trabalho, à educação, à saúde e à moradia e uma renda básica para alimentar nossa família”, diz Johana, 36, em entrevista ao El País, que mostra que boa parte das mães militantes são também arrimo de família.
Embora a repressão esteja ainda mais evidente por conta do levante social, a violência contra ativistas colombianos atravessa diversas décadas. Segundo levantamento da ONG Somos Defensores, publicado no dia 20 de maio, 199 líderes comunitários e defensores de direitos humanos foram assassinados no país em 2020.
‘Mamás 1 Línea’ – mulheres mães na Linha de Frente das manifestações colombianas
©Aivan Valencia
A proposta de reforma tributária, que afetaria principalmente os pobres, foi retirada. Mas para entender os últimos acontecimentos no país vizinho ao Brasil é preciso relembrar os acontecimentos históricos que fizeram a população querer dar um basta.
O acesso à saúde é precário, assim como o acesso à universidade. O país nunca teve um governo progressista no poder, sendo governado desde os anos 1990 por um governo de ideologia neoliberal, que é um tipo de governo que preza pela privatização e menos interferência do Estado no país.
O atual governo, Iván Duque, tem o apoio do ex-presidente Álvaro Uribe, de extrema-direita. Hoje, o movimento ultraconservador colombiano recebe o nome de Uribismo, em referência ao nome do ex-presidente.
Para explicar o que está acontecendo no país vizinho e também fazer um paralelo com a violência estatal brasileira contra pobres e negros, o Nós, mulheres da periferia conversa com Amanda Harumy.
Graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de São Paulo, é mestre e doutoranda em Integração da América Latina pela USP, com foco em movimentos sociais, democracia e Colômbia.
Amanda explica que os protestos estão relacionados com o processo político colombiano, principalmente após a assinatura do Acordo de Paz entre o Estado e as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia), em 2016, que viveram um conflito por mais de 50 anos. Leia abaixo na íntegra!
Amanda Harumy é especialista em Colômbia
©Arquivo pessoal
Nós: O que está acontecendo na Colômbia neste momento?
As pessoas estão nas ruas contra o avanço do neoliberalismo, mas também contra a política violenta, a opressão, o terrorismo de Estado da extrema direita, que é representada pelo Iván Duque, o que é uma característica do Uribismo. Álvaro Uribe foi presidente da Colômbia antes de 2010 e representa algo muito forte na sociedade colombiana, que é uma narrativa da guerra e do conflito de que o problema da Colômbia era as FARC. Na concepção deles, as FARC deveriam ser exterminadas.
Nós: o que são as FARC (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia)?
Amanda: As FARC surgem em 1964, em um momento na América Latina que há vários movimentos com essa proposta revolucionária. As FARC se tornaram o braço armado do Partido Comunista e buscavam a revolução, a transformação da estrutura política por meio da revolução da luta armada. Só que essa estrutura política vai se transformando e a partir dos 2010 as FARC e os movimentos sociais e grande parte da sociedade já estavam exaustos do conflito com o Estado. Era uma guerra que não tinha um perdedor, ela se arrastava. São mais de 50 anos de guerra e a probabilidade é que ela continuasse. Em 2010, as FARC entenderam que a América Latina era progressista e que havia [na região] a experiência de uma revolução democrática. Seja na Venezuela, ou até mesmo no Brasil, a esquerda chegou ao poder por meio do voto e por meio de um partido político. As FARC entendem que querem seus direitos políticos, abrindo mão do conflito, querendo a anistia política e decidem disputar politicamente pela democracia. É isso que fica estabelecido no Acordo de Paz assinado em 2016. As FARC entregam suas armas na ONU (Organização das Nações Unidas), se desarmam, fazem a parte delas em cumprir o acordo, mas o Estado não. O Estado volta a matar em busca do extermínio.
Nós: e o que está acontecendo agora tem relação direta com essa história?
Amanda Harumy: Tudo que está acontecendo agora tem a ver com o acúmulo do processo político da Colômbia desde o Acordo de Paz. Em 2010, o governo do Juan Emanuel Santos sinaliza um diálogo com as FARC, o que representa uma oxigenação dos movimentos sociais, que até então eram muito criminalizados. Havia uma apatia política, porque era muito perigoso se interessar por política. Houve um momento histórico conhecido como ‘La Violência’, no qual muitos líderes foram assassinados. Depois, aconteceu o extermínio da União Patriótica, um partido de esquerda. Quando tem esse espaço para dialogar sobre qual Colômbia as pessoas queriam, isso fortaleceu a política. Hoje, vemos um movimento muito politizado nas ruas. Com certeza, é resultado de 2010, quando os movimentos sociais começaram a se reorganizar para o tema da paz. Os diálogos de Paz e a própria assinatura do Acordo de Paz foram rasgados agora pelo Iván Duque. De 2016 a 2018, o então presidente, Santos, não conseguiu implementar e seguir juridicamente com o acordo. Mas de 2018 até agora acontece mesmo um assassinato, perseguições, então, o movimento das pessoas na rua hoje é muito amplo e muito político, porque e contra os avanços do neoliberalismo, ele é contra o terrorismo de estado, contra o fim do acordo, porque o acordo foi compactuado pela sociedade.
Nós: pode explicar melhor o que foi o Acordo de Paz e por que o acordo foi questionado?
Amanda: Houve momentos muito fortes de guerra e de combate à guerrilha e quem liderava esse pensamento político, e quem lidera ainda isso é o Uribe. Em 2010, o presidente Emanuel Santos, que havia sido filiado político do Uribe e também chefe da Guarda do Uribe, chega ao poder. Quando ele ganha, no primeiro dia de governo, sinaliza que vai buscar a paz. Ele trai e rompe com o projeto Uribista e quando ele rompe, o Uribe já começa uma campanha anti-paz, enquanto o Emanuel Santos começa uma campanha de conscientização do Acordo de Paz. Em 2010, começa o processo do acordo entre o Estado e as FARC. Em 2016, o acordo foi assinado. A paz também significa que o capitalismo vai poder avançar em regiões que o capitalismo não consegue avançar na Colômbia, como na região amazônica, regiões de muito conflito. A paz também foi interessante para um nível de capitalismo. Mas a partir de 2016 começa um conflito entre uma extrema-direita [ contra a paz] e a favor do conflito com as FARC e uma direita liberal a favor da paz. O Uribe representa os latifundiários e o narcotráfico e os paramilitares. O Uribe até foi preso ano passado, porque foi comprovada a relação dele com o paramilitarismo.
Nós: Como a população colombiana chega às manifestações atuais?
Amanda: As fortes manifestações de 2021 não acontecem do nada. Em 2019, aconteceram manifestações muito grandes, com várias greves do movimento estudantil e dos movimentos sociais, sinalizando que a sociedade estava esgotada desse projeto de extrema-direita do atual presidente, Iván Duque. Iván Duque, em 2018, venceu as eleições apoiado pelo Uribismo. Ele enfrenta Gustavo Petró, que representa a esquerda na Colômbia, e é ex-guerrilheiro. As eleições de 2018 foram muito polarizadas, com muita fake news. A polarização era entre manter ou não o Acordo de Paz. Petro tinha como proposta manter e Iván Duque de rasgar o processo de paz. Duque achava injusto e dizia que o acordo havia oferecido muitos benefícios para os guerrilheiros. Ele começa a rasgar o acordo de paz ao não implementá-lo. A assinatura é muito importante, mas mais importante é a implementação, dando anistia política aos guerrilheiros. Ou seja, com o acordo, todos os guerrilheiros não são mais considerados criminosos, mas voltam a ter seus direitos civis e voltam a poder atuar politicamente. Só que o que a gente realmente vê é uma perseguição dessas lideranças, assassinatos e massacres. Desde 2018, eles são intensificados na Colômbia. Em 2020, houve muitos massacres, mais de 70 massacres desde 2020. Desde a assinatura do acordo, já foram assassinadas 1090 lideranças sociais.
Nós: qual o perfil de quem está na rua contra a política de Iván Duque?
Amanda: A assinatura do acordo no final de 2016 foi resultado de muita vontade política institucional, dos movimentos sociais e das FARC. Hoje, foi derrubada a narrativa de que o problema da Colômbia era as FARC. As FARC entregaram as armas, assinaram o acordo, só que os problemas continuam. O governo do Iván Duque não conduziu bem a pandemia, avança com um projeto neoliberam tirando direitos de trabalhadores, da classe média, aumentando impostos, privatizando as riquezas da Colômbia. Hoje, a narrativa que dizia que a culpa da Colômbia era das FARC não tem mais força. Por isso, as manifestações são muito politizadas contra o neoliberalismo, o que é importante, pois conseguem fazer o cálculo de que é o neoliberalismo que leva ao cenário atual. Outra característica das manifestações é que ela é de jovens. De uma juventude que está desempregada, não tem educação e não tem saúde. Eles já não têm nenhuma oportunidade, eles já não têm nenhuma chance, por isso, estão na rua. O avanço do neoliberalismo, do conflito, colocou eles numa situação extremamente violenta, sem nenhum direito, sem educação. Não há educação pública e gratuita. Não têm direitos, por isso estão na rua, como se fosse um acúmulo desde 2010 até agora.
Nós: Qual é a importância das mulheres e do movimento feminista nesta luta?
Amanda: sim, o movimento feminista é muito importante. No momento dos diálogos de paz, os movimentos sociais sentaram na mesa. O que é muito bonito na Colômbia é que os movimentos sociais entenderam que, naquele momento, precisavam abrir mão das pautas específicas e lutar pela paz. O movimento feminista, estudantil, LGBTQIA+ e Indígena se uniram pra defender a paz, porque entendiam que as psuas pautas só iriam avançar com a paz e que a paz era o primeiro passo. O movimento feminsita teve muita influência nesse processo de organização. Porém, muito das propostas do movimento feminista foram retiradas do texto final do Acordo. O movimento feminista se fortaleceu com lideranças feministas muito fortes. Piedad Córdoba qfoi senadora, a própria prefeita de Bogotá, Claudia López Hernandéz, mulher e lésbica. Hoje, tem uma grande crítica a ela, pois é do Partido Verde, representando um caminho liberal e tem sido considerada conivente pelos abusos do Estado. Ela, na verdade, representa o avanço do feminismo, mas um feminismo liberal.
Nós: quais são as similaridades com o Brasil?
Amanda: Dentre as características similares há esse casamento entre a extrema direita e o neoliberalismo. Essa extrema direita conservadora, que é muito violenta e o neoliberalismo. A gente também avança no Brasil com a narco política, que é algo muito grave, que é quando a política está totalmente relacionada com o tráfico. Os paramilitares colombianos podem ser associados às milícias do Rio de Janeiro, por exemplo. A própria ocorrência de Jacarezinho tem todo aspecto de violência de Estado. O Rio de Janeiro é parecido com a Colômbia, com elementos similares, mas contexto totalmente diferente. Ainda sobre a relação do Brasil com a Colômbia, a Colômbia tem um acúmulo político tem coisas que foram acontecendo que são muito importantes pra chegar a uma manifestação com amplitude. Não é só a esquerda que está na rua, é uma vasta população e muito politizada. Há coisas que a Colômbia tem que a gente não tem ainda. A disputa deles é nas ruas, mas também nas redes sociais. Têm um trabalho muito forte contra a desinformação, que estão conseguindo driblar por meio da internet. A mídia diz que são vândalos, mas eles são organizados. Eles têm uma amplitude que a gente ainda não tem e eles têm politização, então quando estão na rua estão contra o neoliberalismo. Acho que aqui no Brasil estamos começando a ter uma comoção contra a figura do Bolsonaro e contra o genocódio. Mas não tem uma forte crítica ao Paulo Guedes e ao projeto neoliberal. A gente também tem que avançar nessa politização. Tem algo muito simbólico que as manifestações da Colômbia tem muita bandeira, camiseta, e falam muito em salvar um país, tem um nacionalismo, eles ressignificam, coisa que a gente não conseguiu ainda.
Nós: qual é a semelhança desses países?
Amanda: a violência de Estado. Nesses países, eles vão para as ruas para atirar mesmo em estudantes. A violência de Estado aparece como parte de um projeto neoliberal muito profundo.
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