100 mil mortes, 5 meses e um mundo que não existe mais

São tantas as mães, pais, amigos, vizinhos, aqui da minha quebrada ou de outras, que choram num mundo feito de sem: sem abraços, sem despedidas, sem contato físico, sem perspectiva de um "novo normal".

Por Jéssica Moreira

11|08|2020

Alterado em 11|08|2020

Nesta quarta-feira (12) eu completo cinco meses em casa, enquanto o Brasil ultrapassa os mais de 101 mil mortos por conta da Covid-19. São tantas as mães, pais, amigos, vizinhos, aqui da minha quebrada ou de outras, que choram num mundo feito de sem: sem abraços, sem despedidas, sem contato físico, sem perspectiva de um “novo normal”.

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Ponto de ônibus no bairro de Perus. Mesmo diante da pandemia, trabalhadores não pararam.

©Jéssica Moreira

São cinco meses sem ver  meus amigos, sequer as minhas companheiras aqui do Nós. São cinco meses que o direito à cidade, conquistado a duras penas, foi perdido por não ter carro, e ganhou espaço para o medo de se contaminar no transporte público (ônibus, trem, metrô) para o centro da cidade. São Paulo é a cidade com o maior número de infectados, ultrapassando a casa dos 600 mil. E também de mortos, com muito mais de 25 mil.

Uma pesquisa da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que relaciona os óbitos com viagens, mostra que os distritos com mais mortes por Covid-19 também são aqueles onde as pessoas mais usam o transporte público.

A capital paulista entrou em quarentena em 17 de março, mas eu no dia 12. Fiz home office naquele dia, para celebrar o aniversário do meu afilhado. Eu não podia imaginar. Mas, dali em diante, todos os outros dias seriam trabalhando em casa, e todas as outras comemorações online.

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Piquenique virtual com afilhado.

©Arquivo pessoal

São cinco meses de sentimentos misturados. Um dia feliz, outro triste. Um dia mais ou menos, outro triste. Um dia conversando com a vizinha no portão, no outro a notícia que ela não está mais entre nós. Mais um dia, outro dia, mais um.

Quando será que isso vai acabar? A resposta? As manchetes dos jornais do dia 8 de agosto respondem a tragédia de um país que nunca olhou para quem está do lado de cá da ponte: mil, dez mil, 50 mil… 100 mil mortes e continua…

Segundo levantamento da Folha de S. Paulo, 65% das vítimas morreram em hospitais públicos e 71% delas tinham alguma comorbidade. 75% dos que morreram tinham 60 anos ou mais. Entre os registros com informações raciais, pretos e pardos foram 59% dos mortos – mas, em 31% das mortes, não há informação sobre a cor das vítimas.

Estamos em luto. Todas e todos. Por todos que foram, mas também pelo mundo que não existe mais.

Mesmo diante de um possível e seguro retorno, a nossa sociedade não voltará a ser a mesma, não só porque agora teremos que usar máscaras.

Especialistas apontam que a 4ª onda da pandemia será a de saúde mental. Ansiedade, depressão, transtornos do sono estão nessa conta e tantos outros mais, que foram causados diante do confinamento, do medo e da insegurança desses tempos tão sombrios.

Em outra esfera, economistas também apontam para a pior recessão da região latino-americana que poderia existir. Enquanto isso, os milionários continuam ficando cada vez mais milionários, e os pobres, cada vez mais pobres. Chico Science já deu essa letra, o de cima sobe e o de baixo desce.

Com tudo isso, eu, aqui no meu quintal no extremo norte da cidade de São Paulo, continuo olhando pela janela a rua cheia de meninos empinando pipas e ouvindo funk. A quarentena, pra eles, sempre foi sinônimo de férias, brincadeira na rua até o entardecer. Do outro lado da vila, o som alto do “parabéns pra você” chega ainda forte no quintal. Aglomeração e festa. Narguilé passando de mão em mão. O bairro atravessa o fim de semana assim, carro na rua, amigos reunidos.

É difícil viver em confinamento quando a rua é o único quintal possível. Quando todos da família precisam trabalhar. Quando a vida toda se viveu em comunhão com os vizinhos. É difícil. Enquanto isso, eu olho o movimento e tento proteger minha família a sete chaves, em vão.

Me sinto paranoica, um peixe fora d’água da minha própria rua. Olho os números de mortes subindo a cada dia. É, não estou errada, mas também não sei o que fazer. A periferia seguiu vivendo, seguiu trabalhando. Seguiu, entende?

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Unidade Básica de Saúde em Perus

©Jéssica Moreira

Ando por todos os cantos do bairro. O calçadão tomado de vendedores sem máscara, enquanto uma faixa da prefeitura, altiva e torta, diz em letras garrafais “evite aglomerações”. Ao mesmo tempo, é o dinheiro dessas vendas que garante a sobrevivência dessas pessoas, que, muitas vezes, nem conseguiram ter acesso ao auxílio emergencial oferecido pelo governo.

Na Unidade Básica de Saúde (UBS), as filas não são curtas. Embora organizados, eu mesma passei quase duas semanas entre a UBS e a Ama Especialidades do bairro para conseguir uma mísera receita para um remédio do coração da minha mãe, que é altamente grupo de risco, pois também tem quase 60. Se não fosse a agente comunitária, acho que ainda não teria conseguido o bendito papel.

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Calçadão de Perus (SP)

©Jéssica Moreira

Não devemos negar a ciência, jamais. E seguimos esperançosos com a possibilidade de uma vacina que possa nos proteger. Mas eu gostaria de trazer a sabedoria da minha vó Laurentina, que dizia que tinha muito medo de perder a memória, pois se perdesse a memória esqueceria suas rezas. “A fé é a proteção do pobre”. Eu até gostaria de discordar, apontar nossas políticas públicas e o papel do Estado na proteção de nossas vidas, mas, na verdade, quem, além de nós mesmos, poderá nos proteger?

Jéssica Moreira, 29, é escritora, jornalista e cofundadora do Nós, mulheres da periferia.

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