‘Nós por nós’: negros não precisam entender como agradar os outros
África não existe para dar conta do que nós supomos que ela deva ser. Confira a reflexão da jornalista Lívia Lima.
Por Lívia Lima
03|08|2020
Alterado em 03|08|2020
Em 2018 eu viajei para a África do Sul nas minhas férias do trabalho e esta foi uma experiência incrível, que marcou profundamente minha vida. O objetivo era fazer aulas de inglês, mas também conhecer um pouco sobre o continente que faz parte das minhas origens. Infelizmente, por conta de todo nosso histórico escravocrata, não sei de fato qual a árvore genealógica da minha família, quem eram de fato meus ancestrais, de que região vieram. Espero ainda um dia descobrir um pouco sobre isso.
A viagem foi um processo de grande aprendizado e muitas reflexões, que incluem também grandes complexidades e contradições. Pouco aprendemos sobre África em nossos processos educativos formais, e os imaginários que temos sobre também, muitas vezes, não são exatamente o que de fato acontece por lá. E que bom, porque África não existe para dar conta do que nós supomos que ela deva ser.
Lívia Lima, do Nós, mulheres da periferia, em viagem na África do Sul.
©Arquivo Pessoal
Um dos dias mais marcantes da viagem foi quando sai junto com estudantes da escola de inglês para jantar em um restaurante de comida “tipicamente” sul-africana. No grupo havia pessoas de diferentes nacionalidades, e no espaço claramente havia muitos outros estrangeiros, como nós. Assim como acontece no Brasil, a maioria dos negros estava ali para servir.
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Havia um grupo musical se apresentando, com vestes e músicas típicas, bem ao modo que agrada os turistas. Fiquei muito incomodada com o que acontecia, que se repetiu durante toda a viagem em outras situações. Como uma pessoa que se reconhece negra, foi muitas vezes constrangedor estar do outro lado, como mais uma turista, e ver que muitas vezes os africanos precisam se colocar no papel do “exótico”, reafirmando tantos estereótipos, em sua maioria, racistas. Também eu já passei por situações semelhantes com estrangeiros, no Brasil e em outras viagens que fiz para o exterior, e sei o quanto isso nos afeta.
Mas o que mais me deixou emocionada e feliz naquele jantar foi como o encerramento da noite se deu. Nosso grupo foi um dos últimos a deixar o restaurante, ficamos por horas na mesa, conversando, bebendo, nos divertindo. E quando dei por mim, todos os turistas já tinham ido embora, restavam apenas nós, os trabalhadores do restaurante, e uma mesa com uma família africana.
Foi então que a mágica aconteceu. Os músicos, mais animados do que durante toda a noite, continuaram a tocar, a dançarina se mostrou muito mais empenhada em se apresentar, o clima era de muita alegria. Nós, então, deixamos nossas mesas e fomos todos dançar, junto com a outra família, que tinha um bebê, que eu até peguei no colo. A festa começou, de verdade, quando ninguém mais estava lá olhando.
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Sai do restaurante com uma grande lição. Não importa se muitas vezes os africanos – e, ainda nós negros brasileiros, e tantos outros em diáspora – estejam performando algo que pareça que seja para o aplauso dos turistas, dos outros, dos brancos. No fundo, o que fazemos, o que celebramos, sempre será nossa cultura, nossa identidade, e isso fazemos por nós mesmos.
Que os outros tachem ou chamem de estereotipado, o que importa é que nós sabemos o que nos toca e o que sentimos de verdade.
Lívia Lima é jornalista e cofundadora do Nós, mulheres da periferia