
5 encontros precursores da Marcha Nacional de Mulheres Negras
Antes da primeira Marcha, em 2015, uma série de mobilizações pavimentaram o caminho, construindo um movimento de mulheres negras com identidade própria e força nacional
Por Amanda Stabile
06|10|2025
Alterado em 06|10|2025
Em 25 de novembro de 2025, Brasília voltará a ser ocupada pela força coletiva das mulheres negras. A 2ª Marcha Nacional de Mulheres Negras pretende reunir um milhão de mulheres de todo o país, reivindicando reparação e bem viver. Trata-se de uma continuidade da primeira marcha, realizada em 2015, quando mais de 100 mil mulheres negras caminharam juntas contra o racismo, a violência e em defesa da vida.
Mas esse gesto coletivo não nasceu do nada. Foi fruto de décadas de organização, resistência e articulação em diferentes cantos do país. Antes da primeira Marcha, uma série de encontros, atos e mobilizações pavimentaram o caminho, construindo um movimento de mulheres negras com identidade própria e força nacional. Relembre cinco deles:
I Encontro Nacional de Mulheres Negras no Brasil (1988)
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Em dezembro de 1988, no município de Valença (RJ), cerca de 450 mulheres negras vindas de 17 estados brasileiros se reuniram para um evento histórico: o I Encontro Nacional de Mulheres Negras. Realizado no ano em que o Brasil celebrava 100 anos da abolição da escravidão, o encontro denunciou as continuidades do racismo e do sexismo na sociedade brasileira.
Essa reunião foi fruto de uma longa caminhada. Desde os anos 1950, mulheres negras já se organizavam em associações e grupos locais. Mas foi a partir das décadas de 1970 e 1980 que suas vozes começaram a ecoar com mais força, enfrentando tanto o machismo dentro do movimento negro quanto o racismo no feminismo dominado por mulheres brancas.
Um ano antes, em 1987, em Garanhuns (PE), mulheres negras se reuniram para discutir a necessidade de um espaço próprio. Ali nasceu a ideia de um encontro nacional que colocasse no centro as experiências e demandas específicas das mulheres negras brasileiras.
Durante os dias do evento, os debates foram intensos e diversos: democracia racial, sexualidade, estética, saúde, violência, educação, história africana e identidade. As participantes denunciaram a solidão afetiva da mulher negra, a exclusão dos espaços de poder, e a persistência de estereótipos que as desumanizam. Ao mesmo tempo, celebraram suas ancestralidades, saberes e formas de resistência, por meio de oficinas culturais, rodas de conversa e manifestações artísticas.
O encontro não foi apenas um evento político. Foi um gesto de afirmação e resistência. Ali se consolidou um feminismo negro brasileiro, que entende que raça, gênero e classe estão profundamente entrelaçados. Inspiradas por pensadoras como Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro e bell hooks, aquelas mulheres reivindicaram uma nova forma de fazer política: a partir da memória, da comunidade e do corpo.
Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida (1995)
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Realizada em 20 de novembro de 1995 (Dia da Consciência Negra), em Brasília, a Marcha Zumbi dos Palmares marcou os 300 anos da morte de Zumbi, lembrado como herói nacional e símbolo da resistência, e foi um divisor de águas na luta do movimento negro no Brasil. Organizada por diferentes setores sociais — sindicatos, organizações negras, grupos de mulheres e ativistas de diversas regiões — foi um ato de indignação e protesto contra as condições de exclusão, discriminação e violência vividas pela população negra.
Mais do que uma manifestação, a marcha inaugurou um novo ciclo de mobilização política, articulando demandas históricas com estratégias contemporâneas de incidência sobre o Estado. O documento produzido para a ocasião denunciou o chamado mito da democracia racial, mostrando que a desigualdade permanecia em todas as esferas: na educação, no trabalho, na saúde e na segurança pública.
O diagnóstico foi sustentado por dados alarmantes: apenas 1,4% dos negros chegavam ao ensino superior, contra 4,2% dos brancos; 79% dos trabalhadores que ganhavam um salário mínimo eram negros; e 15,9% das mulheres negras já haviam sido submetidas à histerectomia, contra 3,6% das brancas. Na área da violência, 2 em cada 3 mortos pela Polícia Militar paulista entre 1981 e 1989 eram negros.
O texto destacava ainda a tripla discriminação da mulher negra — por ser mulher, negra e trabalhadora pobre. E ressaltava a emergência do movimento de mulheres negras como sujeito político com identidade própria e caráter nacional.
Além da denúncia, a Marcha apresentou propostas concretas de políticas públicas, como acesso ampliado à educação e à universidade, valorização da cultura afro-brasileira, programas de saúde específicos para a população negra e garantia da liberdade religiosa para cultos de matriz africana.
Entre as propostas detalhadas estavam: a inclusão do quesito cor em registros oficiais de saúde, educação e trabalho; ações afirmativas com bolsas e acesso a cursos profissionalizantes e universidades; programas específicos para doenças como hipertensão e anemia falciforme; devolução de objetos sagrados de religiões afro-brasileiras apreendidos pelo Estado; e a titulação imediata das terras quilombolas previstas na Constituição.
O documento foi entregue ao presidente Fernando Henrique Cardoso em 20 de novembro de 1995. Na ocasião, FHC assinou um decreto criando um Grupo de Trabalho Interministerial para desenvolver políticas de valorização da população negra, e o deputado Paulo Paim apresentou um projeto de lei que previa reparação e indenização para descendentes de africanos escravizados.
Esse ato consolidou-se como um marco histórico ao inserir a questão racial de forma decisiva na agenda política nacional, articulando as lutas contra o racismo, a exploração social e a opressão de gênero.
Marcha Noturna pela Democracia Racial (1997 – atualmente)
Criada em 1997, em São Paulo, a Marcha Noturna pela Democracia Racial surgiu a partir da articulação do Instituto do Negro Padre Batista, com lideranças como o Padre José Enes de Jesus, da Pastoral dos Negros, e a advogada Maria da Penha. Desde então, o ato acontece sempre em 12 de maio, véspera do 13 de maio, transformando a data oficial da abolição em um momento de denúncia e reflexão.
No início, o trajeto saía da Rua do Carmo, mas desde a retomada em 2019 passou a sair da Praça da Liberdade, lugar marcado por memórias de escravidão, como a antiga forca, o pelourinho e o Cemitério dos Aflitos. De roupas pretas, tochas e velas na mão, os participantes caminham em cortejo, cantando pontos de axé, com tambores e rezas, levando a espiritualidade negra para o espaço público.
Mais do que um protesto, a marcha é um ritual de memória e resistência. Ela denuncia a chamada “abolição inacabada”, lembrando que a Lei Áurea não garantiu direitos à população negra, e que até hoje persistem desigualdades, genocídio da juventude negra e encarceramento em massa.
Realizada de forma contínua até 2010, a marcha sofreu um período de desmobilização e foi retomada em 2019, ampliando sua rede de apoiadores, que hoje envolve coletivos, associações e parlamentares. Em 2023, contou com a presença de grupos como o Movimento Pretas, o Coletivo Fala Negão, o Movimento Negro Unificado (MNU), além de mandatos coletivos como a Bancada Feminista do PSOL e o Quilombo Periférico.
Ao longo de mais de duas décadas, a Marcha Noturna pela Democracia Racial consolidou-se como um dos marcos da luta negra em São Paulo. Não se trata apenas de caminhar pela cidade, mas de ressignificar a noite que antecede o 13 de Maio como tempo de memória, espiritualidade e reivindicação da plena liberdade.
Marcha das Margaridas (2000 – atualmente)

Frente da Marcha das Margaridas, ato que reuniu 20 mil mulheres agricultoras em Brasília em 2000 e que acontece todos os anos
©Cláudia Ferreira/Acervo Memória e Movimentos Sociais
Criada em 2000, o nome é uma homenagem à Margarida Maria Alves, líder sindical assassinada em 1983, símbolo da luta contra a violência no campo e pela justiça social. Organizada principalmente pela CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares), em parceria com sindicatos, movimentos feministas e organizações agroecológicas, a marcha é realizada a cada quatro anos em Brasília.
Além das grandes mobilizações de rua, o ato envolve processos prévios de formação política, elaboração coletiva de pautas e incidência direta sobre o Estado. Suas bandeiras articulam feminismo, sindicalismo e agroecologia, reivindicando igualdade de gênero, combate à violência, acesso à terra, crédito, saúde, educação e políticas específicas para mulheres rurais. Desde 2003, a agroecologia tornou-se um eixo estruturante, entendida não apenas como uma técnica de produção, mas como modo de vida sustentável, feminista e solidário.
A Marcha das Margaridas conquistou avanços importantes, como a criação da Política Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO) e de seu Plano (PLANAPO I), incluindo metas específicas para as mulheres. Mais que pressionar, o movimento tem sido capaz de propor e monitorar políticas públicas, fortalecendo redes feministas e agroecológicas e se consolidando como símbolo de resistência, democracia e justiça social.
“A Marcha foi fundamental para que o processo de institucionalização das políticas públicas para a agroecologia acontecesse, assim como de outras políticas específicas para as mulheres rurais”, aponta Sarah Luiza de Souza Moreira em sua dissertação “A contribuição da Marcha das Margaridas na construção das políticas públicas de agroecologia no Brasil” (2019).
Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas (2014 e 2023)
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Entre os dias 13 e 15 de maio de 2014, em Brasília, ocorreu o I Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas. O evento foi organizado pela Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) com o objetivo de consolidar a luta pela terra, avaliar as políticas públicas e promover o diálogo entre diferentes organizações quilombolas do país.
O encontro foi considerado um passo importante para o empoderamento das mulheres quilombolas em suas mais variadas formas, gestos e manifestações, enfrentando desigualdades de raça, gênero, classe, geração e etnia.
Na Carta Política do encontro, a CONAQ destacou que as políticas públicas deveriam ir além da relação homem/mulher, apontando a necessidade de que a Lei Maria da Penha fosse adequada ao contexto das comunidades quilombolas, já que a violência doméstica aparecia como um dos principais problemas vividos.
A Carta também afirmou que a primeira violência é “o fato da gente ser mulher”, chamando atenção para as múltiplas violências que atravessam a vida quilombola: física, moral, psicológica, territorial, ambiental, religiosa e institucional. Além disso, as mulheres quilombolas reafirmaram que a luta pelo território não se limita à sua titulação, mas à possibilidade de viver nele de forma sustentável e agroecológica, garantindo o direito à terra, à cultura e ao bem viver.
Também foram denunciadas outras formas de violência que atingem diretamente essas mulheres, como a falta de proteção das lideranças, os impactos de grandes empreendimentos, o abuso sexual, o avanço das drogas, a poluição ambiental, a ausência de consulta às comunidades sobre políticas que as envolvem, a discriminação e o racismo institucional.
Nove anos depois, entre os dias 14 e 18 de junho de 2023, aconteceu em Brasília o II Encontro Nacional de Mulheres Quilombolas, que reuniu mais de 300 mulheres de 24 estados brasileiros — além de representantes da Colômbia e do Equador. O encontro teve como tema “Resistir para Existir”.
Durante cinco dias, as participantes denunciaram a falta de políticas públicas específicas para a população quilombola e afirmaram a urgência de enfrentar as desigualdades, a discriminação e a violência que atingem suas comunidades. No encerramento, foi lida e aprovada uma carta coletiva, reafirmando o compromisso das mulheres quilombolas com a defesa de seus territórios, culturas e modos de vida.