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‘Saúde virou negócio. Mas vale lutar, foi uma luta que fizemos parte’

Conheça a história Teresa Mariano de Souza e sua luta coletiva para construção e estabelecimento das unidades básicas de saúde na cidade de São Paulo. "As mulheres se colocam mais a trabalhar pelo bem geral, pelo bem comum".

Por Lívia Lima

19|03|2020

Alterado em 19|03|2020

Este conteúdo faz parte do especial “Na periferia da saúde: precarização do SUS afeta mais as mulheres negras e pobres.

Quem passa pela rua São José das Espinharas e na Avenida Casa Grande, em frente à UBS (Unidade Básica de Saúde) Reunidas 1 e UBS Reunidas 2, respectivamente, localizadas na Vila Industrial, região do Sapopemba e São Lucas, no extremo leste de São Paulo, pode não entender o motivo das denominações em comum, e provavelmente desconhece sua história.

O fato é que o nome “Reunidas” vem da fundação dos primeiros equipamentos de saúde do bairro, e representam a aglomeração de diversas vilas, que passariam agora a ter, a princípio um, e depois dois, equipamentos públicos de saúde, para atender a população e todas as vilas e bairros do entorno.

“Reunidas”, porém, também poderia ser uma homenagem àquelas que – juntas – tornaram possível, que essas unidades básicas de saúde fossem implementadas: mulheres, líderes dos movimentos de saúde que conquistaram o direito ao atendimento público perto suas casas.

Teresa Mariano de Souza foi uma dessas mulheres e ajudou a construir o próprio bairro e a escrever sua história. Moradora da Vila Industrial desde os onze anos de idade, quando seus pais saíram da cidade de Bandeirantes, interior do Paraná, trazendo os seis filhos em busca de oportunidades de trabalho em  São Paulo na década de 50, foi no bairro onde se casou, trabalhou, criou seus oito filhos, e hoje, aos 71 anos, ajuda na criação dos 18 netos.

Dona Teresa relata que na época em que chegou a região era praticamente rural. “A área tinha pouquíssimas casas, era tudo mato. Depois foi crescendo, construindo casas, loteando. Não tinha asfalto nem, luz, a água era de poço. Para ir para os lugares tinha que ir até a Vila Prudente pegar o bonde, ou o trem em Utinga, na divisa com Santo André, para ir para a Estação da Luz”.

E foi, segundo a moradora, desde o início, por meio da mobilização da comunidade, que a população começou a ter acesso aos seus direitos básicos. “Logo que chegamos, meu irmão mais velho começou a participar da comunidade São Pedro Apóstolo, que era bem envolvida com  a questão social. De lá houve uma organização para melhoria do bairro. Teve o movimento pelo transporte, aí teve a primeira linha de ônibus pro Parque Dom Pedro.

Teve movimento para luz, para escola. Mais a maior luta foi a da saúde”, afirma.

Teresa foi uma das principais lideranças do movimento de saúde do bairro entre os anos 1980 e 1990, sendo uma referência na integração com outras regiões, o que no período foi fundamental para a implantação das unidades básicas de saúde nas periferias de São Paulo, e também contribuiu para a criação do Sistema Único de Saúde, garantido legalmente a partir da constituinte de 1988.

Hoje aposentada como agente comunitária, Teresa entretanto, não era especialista em saúde. Veio de seu envolvimento nas atividades sociais da comunidade religiosa São Pedro Apóstolo a atuação militante, e antes de se engajar no movimento, ela trabalhava como costureira.

História do bairro e da luta

“Em 1973 já tinha posto de puericultura, davam vacina e leite para as crianças desnutridas. Aí passou um tempo e fecharam e ficamos sem nada. Um dia falaram: ‘o pessoal tá montando uma comissão para ir ao Palácio do Governo pedir um posto. Aí eu fui, com a Sociedade Amigos da Vila industrial, reivindicar a abertura do posto. Eles abriram um posto completo, com médico, enfermeira, pediatra. Mas não ficou muito tempo porque o espaço era pequeno. Depois alugaram outro espaço. Era uma antiga corretora, grande,  várias salas. Tinha ginecologista. Era pra ter até dentista, mas nunca funcionou. O prédio ficava em um lugar alto, os idosos e pessoas com deficiência não tinham como subir. Mas a gente já tava organizado. Trouxeram slides, de outros lugares, e a gente foi aprendendo como fazer a luta”, conta.

A partir dessas relações entre movimentos de diferentes regiões, Teresa recebeu, então, o convite para participar de um curso e se especializar na atuação da luta pela saúde. “O curso era do do Movimento da Zona Leste, que era o mais organizado. Tinha o núcleo do PT (Partido dos Trabalhadores) do bairro, aí veio uma proposta do movimento e queriam uma pessoa para o curso. Na época, eu estava em uma situação meio difícil. Fazia pouco tempo que meu marido tinha morrido, aí eu precisava trabalhar, eu trabalhava com costura. Aí o curso tinha um salário mínimo e ajuda de custo para condução e alimentação. Aí minha, filha eu me entreguei de corpo e alma para o movimento”.

O curso para formação de militantes da área de saúde, organizado pelo Movimento de Saúde da Zona Leste, aconteceu durante cinco meses, de segunda a sexta-feira, em São Miguel Paulista. Aos sábados, os alunos eram liberados para atuarem em seus respectivos bairros. “Depois do curso continuei participando e comecei a organizar o movimento no próprio bairro. “Eu fiquei apaixonada pelo movimento. Ele abrangia todas as pessoas. A gente era do PT mas não ficava fechado no partido. Às vezes a questão partidária é radical, mas no movimento tinha abertura para todos participarem, tendências várias. Tinha quem não era de nenhum partido. Ainda em 1988 elegemos o primeiro conselho de saúde da Vila Industrial. Eu continuei no movimento do bairro e da zona leste. No fim do ano teve uma assembleia. E eu fui representar a região sudeste: Vila prudente, Ipiranga, Sapopemba, fazia parte até o Jabaquara. Eu era liberada pelo movimento, recebia para fazer esse serviço; a gente tinha um grupo muito bom, as pessoas me ajudaram. Conseguimos eleger os conselhos na Vila das Mercês, São Savério, São João Clímaco…”.

Além da formação dos conselhos de saúde, o movimento então iniciou uma grande mobilização para a criação de postos de saúde em todas as regiões de São Paulo. Dona Teresa participou ativamente, principalmente na Vila Industrial. “Na época a gente tava na luta para as construções dos postos de saúde.  Conseguimos na Vila Alpina, Vila Califórnia, Independência, Americanópolis, Elba, Vila das Mercês, São Savério. Atingimos todos esses bairros com as nossas lutas. E por incrível que pareça o nosso foi o mais difícil. Vila industrial foi o último”.

“A gente tinha um posto em um espaço alugado e queria um espaço nosso. Fizemos abaixo assinado. A gente já tinha conselho e participava em secretaria de saúde, finanças, onde falava pra gente ir, a gente ia. A gente foi no escritório do ERSA (Escritório Regional da Saúde, na época) e já tinha o terreno, que a gente já tinha visto e tivemos a feliz sorte que o diretor era o Dr. Francisco, ele era ligado aos movimentos. Ele disse que já havia uma luta em outros bairros e falou pra unificar. Aí conseguimos concretizar, conseguimos que eles começassem a construção. No governo do Quércia começou a construção. Terminou o mandato, o Fleury parou. Ficou uns 10 anos com a construção parada. E a gente sempre na luta. Fizemos várias caminhadas no bairro para alertar a população. Da São Pedro até o terreno caminhando. Agora aqui tem os eucaliptos, não dá pra ver”, aponta Teresa para a direção da UBS Reunidas I, próxima à sua casa.

“No governo do Mário Covas, o David Capistrano era secretário de saúde em Santos, e estava implantando o Programa Saúde da Família (PSF) começou lá. Essa ideia foi trazida para São Paulo. Para implantar o PSF, adiantaram a construção dos postos de saúde. A gente tinha o postinho Iguaçu, onde tinha médico duas vezes por semana e uma enfermeira. Lá implantaram o PSF e o nosso, a construção, parada”.

Segundo Teresa, o movimento não recebeu bem inicialmente o Programa Saúde da Família no bairro e disso se deflagrou algumas conquistas. “A gente questionava porque eles só atendiam um número de pessoas. Só cinco equipes, um número x de famílias, só as cadastradas, e o resto das pessoas não atendia. O outro posto não, lá atendia o entorno. Quem fosse, era atendido. A  gente questionou. Muitas famílias ficariam sem atendimento. Aí contamos todas as famílias, de casa em casa, todas as pessoas para mostrar para o secretário quantas pessoas iam ficar sem atendimento. Fizemos o levantamento e fomos para a secretaria. Paralelo a isso, começamos a procurar casa pra mostrar para o governo para alugar outro espaço e atender as famílias. E foi o que nós fizemos. E conseguimos. Inauguraram o posto, aumentaram a equipe e tiveram outro espaço que cobria as famílias sem atendimento. Por isso temos o Reunidas I, o espaço construído, e o Reunidas II, espaço alugado. A ainda o Iguaçu. Não ficamos sem atendimento”.

Conquistas

Após a construção e estabelecimento das unidades básicas de saúde, os participantes do movimento continuaram participando ativamente dos conselhos. “Minha filha fez parte da primeira equipe do posto como agente comunitária. A gente continuou durante um bom tempo. Elegemos o conselho várias vezes, depois tivemos até disputa entre as chapas. Perdemos a eleição, mas participávamos junto. Quem não era do conselho, fazia comissão para ter a qualidade do serviço. Ter o posto é uma coisa, ter a qualidade é outra. A gente fazia reunião dentro do posto, fazia questão.  Diziam que a gente era espião. A gente fiscalizava o atendimento. A gente prezou pela qualidade do serviço”.

A atuação de dona Teresa, porém, ia além do conselho da UBS Reunidas 1 e o movimento se expandia e realizava diversas relações. “Organizamos o movimento no bairro, depois juntava os conselhos da Vila Prudente e tinha uma vez por mês o da região Sudeste.  Continuamos com a integração com movimento de saúde da zona leste, tivemos participação geral no movimento de São Paulo. A gente articulou os movimentos na norte, oeste. Participamos da Conferência Nacional (de saúde do trabalhador), em 94, da conferência de saúde mental e luta antimanicomial. Fechamos um manicômio da Vila Alpina, de mulheres. O que faziam era impressionante. A gente fechou. A gente tinha sorte de ter uma prefeita, a Erundina. As mulheres voltaram para suas casas. Não tinha necessidade de ficarem confinadas. Criaram os hospitais Dia; as pessoas iam para o hospital fazer as atividades, e depois voltavam para o convívio da família”.

Teresa lamenta que atualmente o movimento não seja tão intenso. Vítima de uma artrose nas pernas, a aposentada já não consegue sair muito de casa e não participa das reuniões nas UBS. “Hoje infelizmente a população não se reúne mais. A gente levava as propostas. Hoje as propostas são feitas na reunião. Infelizmente não é só aqui, em vários lugares.  Vila Ema eu vejo que está mais atuante porque vai construir ainda o posto. Espero que continue. Porque depois que inaugura, se dão por satisfeito…tem que se apropriar, ver como uma conquista. Aquilo ali não foi dado, é uma luta bem árdua. Hoje pra conseguir alguma coisa tá difícil, tivemos uma perda muito grande, não tem um movimento organizado. Tem lutas isoladas. Cada um tem o seu conselho gestor. Virou uma burocracia. Hoje eu sinto falta dessa organização. O que nós conseguimos foi com organização. Se não tivesse,  a gente não teria conquistado. A gente conseguiu asfalto, creche, segundo grau, tudo foi graças à luta, se organizando e indo atrás. A gente não ficou parado esperando”.

Movimento feminino

Teresa explica que a organização dos movimentos por direitos nos bairros das periferias, era, sobretudo, liderada por mulheres.

“Sempre foi mais mulheres. Tinha homens, mas 80% eram mulheres. Nós tínhamos um grupo, era inabalável.

Um grupo de pessoas atuantes, compromissadas com a luta. Minhas filhas iam, já os homens nunca se envolveram, só quando tinha eleição, iam votar, a participação deles era essa. As meninas iam nas reuniões”. Questionada se as mulheres do movimento do período seguiram carreiras políticas, Teresa responde: “os homens pleitearam carreira política, as mulheres não. E foram grandes mulheres. Uma atuação bem predominante”.

Em relação ao porquê o movimento ter sido constituído por uma maioria feminina, Teresa afirma: “Disponibilidade. Não de tempo; as mulheres têm menos tempo que os homens, mas disponibilidade de se dispor. As mulheres se colocam mais a trabalhar pelo bem geral das coisas, não pensa só.  A mulher tem uma compreensão maior das necessidades. As vezes eu penso, fico relembrando. Eu deixei muito meus filhos. Eu era sozinha, eu trabalhava e participava. Mas eu sempre conversei com eles: ‘o que eu quero para vocês, eu não quero só para vocês. Que todas as pessoas tenham os mesmos direitos, as mesmas condições que eu quero para vocês’. Eles me entenderam. Mas pela sua participação, você acaba negligenciando a família, ainda mais eu que tinha uma família grande, oito filhos. Os maiores acabaram cuidando dos menores. Nós tivemos homens valorosos e temos até hoje. Mas a maior parte foi das mulheres. Hoje tá mais voltado para partido. Mas tivemos responsáveis pelo bem comum”, relembra.

SUS e sua implementação

Sobre a implementação do SUS – Sistema Único de Saúde, Teresa acredita que a lei precisa ser mais protegida e efetivada. “Ele seria ótimo se ele fosse implantado do jeito que foi gerido, seria um dos melhores programas de saúde que teríamos. A municipalização da saúde. O município ser o responsável pela saúde local. A gente teve uma luta muito grande. Questão básica nos postos de saúde. Atenção para prevenção da doença. Não esperar ficar doente, cuidar para que não fique doente. A questão da universalidade, equidade, garantiria todos os direitos das pessoas no atendimento. Hoje passaram a responsabilidade para terceiros.  Ele só não funciona porque não há responsabilidade do governo. Não investe o que deveria ser investido. O dinheiro desviado. Isso faz com que a gente viva o que estamos vivendo”

“O SUS é um dos melhores. Vale ainda defender. Sempre fiz tudo no sistema público. Tenho convênio no Hospital do Servidor, mas sempre usei o SUS. Eu acredito no SUS, ele infelizmente não é bem gerenciado, se fosse investido o que é preciso, seria ideal. Vale a pena investir para ele que ele seja acreditado, para que funcione. Quando o governo terceiriza, quem gerenciar leva o dele, tudo não vai estar sendo investido e a corrupção que tira o que era para ser investido.

Saúde virou negócio. Mais vale lutar, foi uma luta que fizemos parte.

Quando a gente começou o movimento, não se falava em SUS. Bem antes, 10 anos antes do SUS, já tinha luta aqui. Quando a gente foi tomando conhecimento, a gente foi lutando pra ele acontecesse. Para que fosse implantado”.

Reunidas 2

Teresa não participa mais dos encontros na UBS Reunidas, mas não perdeu o velho hábito de se reunir, principalmente entre mulheres. Atualmente, quando possível, participa das reuniões mensais do grupo de mulheres da Vila Industrial.  “Hoje tem um grupo de mulheres. É a única coisa que eu ainda participo fora da igreja. Minhas quatro filhas participam, minhas netas. Tem o pessoal do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) que está organizando. A gente procura lugar neutro, tem o espaço da Sociedade Amigos (da Vila Industrial), ou no escritório do PSol, mas é mais na Sociedade Amigos. Como minhas filhas me acompanharam desde crianças, elas ainda participam do movimento de mulheres.  Mulheres de várias idades. Minha neta participa, tem outras jovens. Tem senhoras. A gente discute cidadania, trabalho, gênero, saúde. Por enquanto não tivemos ação, mais discussão. Mas sinto falta da organização do movimento”, confessa.

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