“Não aceitamos ganhar menos”, diz coletiva negra em carta aberta

Coletiva Negras em Movimento lança carta aberta pedindo igualdade sarial para as mulheres negras no mercado de trabalho. Mulheres negras e organizações podem assinar a carta.

Por Jéssica Moreira

01|10|2020

Alterado em 01|10|2020

“Nosso posicionamento é objetivo: as mulheres negras não aceitam ganhar menos que qualquer pessoa que desempenhe as mesmas profissões, cargos e funções”. É o que diz um dos trechos da carta aberta sobre a desvalorização do trabalho de mulheres negras ‘Não aceitamos ganhar menos‘, organizado pela Coletiva Negras que Movem.

Lançada nesta quarta-feira (30), a carta tem como objetivo jogar luz à histórica desigualdade salarial entre brancos e negros, principalmente no que diz respeito ao trabalho desenvolvido por mulheres pretas e pardas.

“Com Mãe Stella aprendemos que as pessoas não valem pelos cargos sociais ou postos religiosos que possuem, mas sim pelo simples fato de existirem. As mulheres negras não só existem, como movimentam R$ 704 bi por ano na economia brasileira”, aponta um trecho.

A coletiva é formada por 23 mulheres negras contempladas pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, do Fundo Baobá, que mesmo diante do isolamento social por conta do novo coronavírus seguem fortalecendo a agenda de direitos ligados às mulheres negras.

Com Mãe Stella aprendemos que as pessoas não valem pelos cargos sociais ou postos religiosos que possuem, mas sim pelo simples fato de existirem. As mulheres negras não só existem, como movimentam R$ 704 bi por ano na economia brasileira.

“O que impulsiona o tema ter virado uma carta aberta foi o fato de vermos, constantemente, há muito anos, notícias afirmando que as mulheres negras têm uma desvalorização do seu corpo, sua voz, trabalho, intelectualidade, mas a gente nunca aceitou essa condição”, aponta a advogada Mayara Souza, uma das integrantes da coletiva.

Para as líderes da coletiva, a forma como o assunto é noticiado leva a crer que as mulheres negras apenas aceitam essa condição, quando, na verdade, estão há anos lutando contra esse tipo de desigualdade no mercado de trabalho.

“A justificativa, muitas vezes, é que as mulheres negras aceitam receber menos que homens brancos. E nossa posição é que nunca nos perguntaram se a gente aceita ou não receber menos. Agora, a gente afirma: não, não aceitamos receber menos que nenhuma pessoa que desenvolva as mesmas funções que a gente no mesmo cargo, é um posicionamento aberto, para não deixar dúvidas, e que não é um consentimento dado pelas mulheres negras”, complementa Mayara.

Negros e negras representam 55,9% da população brasileira. Entretanto, uma pesquisa do Instituto Ethos, divulgada em 2016, mostrou que somente 4,7% dos cargos executivos das 500 maiores empresas brasileiras são ocupados por profissionais negros.

Segundo o PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), as mulheres negras constituem o maior grupo populacional do país (25,3%), porém ocupam somente 0,4% dos altos cargos nas empresas. Segundo um levantamento feito pelo IBGE em 2018, 68,6% das pessoas em cargos gerenciais em empresas eram brancas e 29,9% eram pretas ou pardas.

A coletiva pretende levar o documento ao maior número de mulheres possível, chamando-as a assinar a carta, assim como organizações que lutam por mais igualdade para a população negra.

“Queremos mostrar que [a diferença salarial] é fruto do racismo estruturado, que diz que nossas competências valem menos. Não achamos que estamos trazendo nada de novo, mas é uma maneira da gente reforçar o posicionamento de mulheres negras que é feito há muito tempo”, diz ainda a advogada.

Leia a carta na íntegra abaixo. Clique aqui para assiná-la: 

Primeiramente, pedimos licença àquelas que vieram antes de nós, nossos passos, intencionalmente desconhecidos e invisibilizados, vêm de muito longe e estão carregados de saberes e forças. Pedimos licença às mais novas, que seguirão estes mesmos passos honrando o aprendizado deixado e deixando aprendizados futuros, cada uma ao seu modo e tempo.

Com Mãe Stella aprendemos que as pessoas não valem pelos cargos sociais ou postos religiosos que possuem, mas sim pelo simples fato de existirem. As mulheres negras não só existem, como movimentam R$ 704 bi por ano na economia brasileira.
Ser mulher negra é ser protagonista da sua própria história e lutar pelos seus sonhos e também por uma sociedade onde todas e todos possam realizar e vivenciar os seus sonhos de forma plena, justa e com segurança.

Por isso, como o que não se registra o tempo leva, deixamos registrado nesta carta aberta, a todas pessoas e instituições públicas e privadas, que a parcela da população formada por mulheres negras nunca aceitou e jamais aceitará qualquer tratamento inferior às outras parcelas da população. Algumas condições são impostas e por isso não nos silenciaremos mais diante de tamanho absurdo.

Nosso posicionamento é objetivo: as mulheres negras não aceitam ganhar menos que qualquer pessoa que desempenhe as mesmas profissões, cargos e funções. Não se trata de um combinado entre as partes, mas sim da desvalorização tácita da força de trabalho, da capacidade intelectual e do racismo estrutural. Qualquer justificativa que tente ignorar este fato não é nada menos que o racismo disfarçado de desigualdades sociais.

Com Lélia González aprendemos que “para mulher negra o lugar que lhe é reservado é sempre o lugar menor, é o lugar da marginalização, é o lugar do menor salário, é o lugar do desrespeito à sua capacidade profissional”. Nós rejeitamos este lugar.

Com Luíza Bairros aprendemos que desde a fundação do Brasil, o racismo, sexismo e classismo se combinam para delinear na sociedade visões que estereotipam e classificam capacidades e atributos de brancos e negros.

Para que a garantia de direitos de mulheres negras e suas famílias, e portanto, de toda sociedade seja realidade é preciso garantir respeito aos sonhos e planos de mulheres vistas por muito tempo como inferiores, e agora, em primeira pessoa gritam como Marielle Franco gritou e como muitas gritaram, antes dela com suas vozes amplas e diversas: “Não seremos interrompidas, silenciadas e desvalorizadas”.

Mostramos agora para a sociedade presente e futura que nós mulheres negras, 24% da força de trabalho deste país racista, responsáveis por 16% do consumo nacional de empresas que não nos enxerga e contraditoriamente 0,4% da força de trabalho dos quadros executivos das 500 maiores empresas do país, não aceitamos ganhar menos.

Muitas de nós estão nos presídios, estão analfabetas, vulnerabilizadas, excluídas, ou ainda o pior estão entre aquelas que mais enterram corpos dos filhos, companheiros e irmãos. Nós estamos nesses lugares mas somos estes lugares e situações. Não pertencemos a esses lugares que nos são impostos pela violência da branquitude e racismo estrutural.

Somos profissionais de todas as áreas, em maior ou menor número, representadas em todos os espaços e recusamos esta diferença salarial. Tire seu discurso antirracista do papel e coloque as mulheres negras no mesmo cargo, salário e espaços de poder e decisão.

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