Moradora da zona leste relata saga para conseguir diagnóstico no SUS

O Nós, mulheres da periferia acompanha a história de Yasmin desde 2019. Até agora, ela não conseguiu cura para seu problema de saúde.

Por Bianca Pedrina

19|03|2020

Alterado em 19|03|2020

Este conteúdo faz parte do especial “Na periferia da saúde: precarização do SUS afeta mais as mulheres pobres e negras.

Yasmin Coutinho sangrou por 12 meses. Dores abdominais limitantes a impediam de trabalhar, cuidar dos filhos e da casa. Foram muitas idas ao médico na rede pública de saúde até a descoberta de sua doença e o devido tratamento pelo SUS (Sistema Único de Saúde).

Sua irmã, Claudinéia Coutinho de Almeida, assim como ela, estava na mesma peregrinação por atendimento, com dores similares e incertezas iguais. As duas iam juntas, muitas vezes, ao médico. Diferente de Yasmin, Claudinéia não teve tempo para a cura e acabou falecendo devido a um câncer no colo do útero.

O luto e o medo de ter o mesmo destino que a irmã permeou essa corrida contra o tempo de Yasmin.

Moradora da Vila Jacuí, bairro de São Miguel Paulista, zona leste da cidade de São Paulo, Yasmin vive na região que tem uns dos maiores índices de tempo de espera para conseguir passar em consulta com médico clínico geral.

De acordo com o levantamento coletado com exclusividade pelo Nós, Mulheres da periferia junto à Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, em 2018,  nesta localidade, as mulheres demoravam 39 dias para conseguir uma consulta em uma UBS (Unidade Básica de Saúde).

Mulher negra, Yasmin tem 31 anos, é metalúrgica, e concilia as 12 horas de trabalho, com as tarefas domésticas, maternidade e casamento. A tripla jornada de sua vida é a realidade de muitas outras que moram nas nas bordas da cidade de São Paulo.

O bairro de São Miguel Paulista possui uma população mais de 89 mil pessoas, sendo que quase 47 mil são compostas por mulheres, de acordo com dados da Sead (Secretaria de Estado de Administração).

Apesar da vida cheia de tarefas, a moradora da zona leste fez questão de parar sua rotina  repleta de afazeres para receber a reportagem do Nós e contar sua história. Deixou de lado a faxina que tinha acabado de começar e compartilhou sua experiência de atendimento ginecológico na rede pública de saúde.

Diagnósticos errados, informações desencontradas e descaso

Com o semblante cansado de quem já não aguenta mais tanto tempo de espera e incertezas, Yasmin relatou a trajetória de idas ao médico, que teve início em novembro de 2017. Dores insuportáveis na barriga e uma hemorragia a levaram a procurar o posto de saúde. Segundo Yasmin, os profissionais que a atendiam diagnosticavam sua dor como cólica menstrual e a mandavam de volta para casa.

“Quase todo o dia eu tinha que sair do serviço e ir para um posto de saúde próximo. Começaram a aplicar morfina, era o que resolvia, a dor parava, só que o sangramento não, isso foi acontecendo por um longo período e eu correndo atrás de médico”, relata.

Pela insistência e pela gravidade do sangramento, Yasmin conseguiu encaminhamento para a Santa Casa de Misericórdia, local onde fez quase todos os exames, um deles teve custo, devido a demora de vaga.

No ano de 2018, houve um aumento de 4,1% na procura por exames, internações nos serviços particulares, de acordo com dados do Mapa Assistencial,  divulgado pela Agência Nacional de Saúde Suplementar. Esse aumento na procura, confirma a tendência de pessoas recorrem a esse serviço, quando o sistema público falha, seja pela demora ou pela não realização de determinados procedimentos.

Com os exames em mãos, Yasmin voltou ao médico, que a diagnosticou com câncer. “Abalou minha auto estima quando soube, aquilo me desabou. Vivia deitada, foi difícil”, conta.

O choque com a notícia veio acompanhada o desencontro de informações, após uma segunda bateria de exames. As incertezas de Yasmin prosseguiram. “Assim que eu recebi o resultado fui encaminhada para a UBS que eu passava perto do meu trabalho.  Neste posto, foi constatado que eu não estava com câncer, mas sim com um caroço no meu útero”, relembra.

O tratamento foi um medicamento por seis meses, sem resolver o problema. Yasmin voltou ao médico. Foi dito a ela que o caroço estava muito grande, por isso, precisaria fazer uma cirurgia, o que não poderia ser feita naquela unidade.

O desespero de Yasmin era tanto, que ela chegou a ir no hospital de referência para tratamentos de câncer, o IBCC (Instituto Brasileiro de Controle do Câncer). Mas, foi orientada que só poderia ser atendida no posto de saúde.

Um ano depois

O diagnóstico veio depois de um ano. Somente em novembro de 2018, com a ajuda da irmã, conseguiu agendar consulta com o médico clínico geral que atendia a família há anos, no posto de saúde perto de sua mãe. A consulta foi marcada, mas o médico faltou. A peregrinação de Yasmin continuou até conseguir realizar a consulta.

O clínico geral que a atendeu disse que não era câncer, tampouco precisaria de cirurgia, ela tinha uma cervicite crônica, que seria tratada com medicamentos.

A morte da irmã: “Para mim foi negligência médica”

“Eu perdi minha irmã há quatro meses, com câncer no útero, eu comecei a correr e fazer os tratamentos todos junto com ela. Eu me sentia condenada, caramba, minha irmã começou comigo, mesmo problema no útero e ela faleceu”. Foi assim, que Yasmin relatou para a reportagem do Nós, em novembro de 2018,  a perda da irmã, Claudinéia Coutinho de Almeida.

As duas estavam indo juntas aos médicos. Para Yasmin, a morte da irmã poderia ter sido evitada, já que, assim como ela,  Claudinéia também teve o diagnóstico errado e começou o tratamento para o câncer tardiamente. “Para mim, foi negligência médica, porque eu e minha irmã começamos a fazer o tratamento juntas, só que no caso dela diziam era infecção, e ela fez bastante tratamento, mas a dor e o sangramento não passavam”, explica.

A irmã de Yasmin teve que pagar um médico particular para ter o diagnóstico preciso. “Demorou seis meses para ela descobrir o que tinha. Ela pagou médico particular e foi então que diagnosticaram o câncer.  Ela voltou no hospital público para fazer o tratamento, mas já estava muito avançado, se espalhou pelo corpo. Então, para mim, foi negligência médica. Talvez se descobrissem desde o começo ela estaria aqui”, diz, inconformada.

“Tem que procurar a UBS da sua área”

A falta de informação, segundo Yasmin, também dificultou a celeridade no atendimento. Até hoje ela não sabe qual posto de saúde atende seu bairro. “Quando eu [casei] e me mudei falaram que eu tinha que procurar o posto de saúde que fazia parte da área onde eu morava. Eu fui em dois postos de saúde [Unidade Básica de Saúde] e falaram que não é minha área. Aí eu fico sem saber em qual deles eu passo, porque também não sabem informar”, detalha.

Em seu bairro, São Miguel Paulista, existem quatro UBSs, no entanto, ela nunca foi atendida por agentes da saúde, e quando precisa, consegue passar no posto perto de seu trabalho, ou conta com a disponibilidade do médico que a atendia quando ainda morava com a mãe, já que muitos informaram a ela, que ali onde mora ela não pode ser atendida.

Racismo e machismo como agravantes

Neste tempo, Yasmin teve que lidar, como mulher, com muitas inseguranças. “No começo eu tinha medo do meu marido arrumar outra, porque eu não podia ter relações sexuais, eu acho que é a primeira coisa que a mulher pensa, ´eu não posso satisfazer meu marido ele vai arrumar outra´”, relata.

Yasmin lembra de seu nervosismo com a situação e  quase depressão. “ Chorava muito, sem ter uma definição sobre minha saúde. Você está doente, só que você não sabe o que você tem, cada um falava uma coisa. Quase perdi o emprego, porque tinha que ficar indo em médico”, desabafa.

Além das diversas barreiras relatadas por ela, a cor de sua pele também compõe esse quadro de descaso. Yasmin não soube citar um exemplo em que o racismo se configurasse de maneira explícita, mas a forma, muitas vezes sutil, de como o preconceito é apresentado.

“Normalmente, os atendentes, na recepção, já tratam a mulher negra de maneira diferenciada. E eu já percebi vários casos que os brancos eles tratam com mais respeito, com mais atenção, eles têm mais cuidado com a pessoa da cor clara”, denuncia.

Dados do dossiê “A situação dos Direitos Humanos das mulheres negras no Brasil”, divulgado em 2017,  apontam que 62% das mulheres que morrem durante os processos de parto são negras. E do total de mulheres negras gestantes, apenas 55% realizam as sete consultas de pré-natal recomendadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e providas pela Rede Cegonha, a política que estrutura a assistência às gestantes e bebês no SUS (Sistema Único de Saúde). As mulheres negras são uma população em vulnerabilidade quando se trata também de doenças como HIV/Aids, hipertensão arterial e diabetes.

Yasmin Coutinho from Nós, mulheres da periferia on Vimeo.

A valorização do SUS

Mesmo com todas as dificuldades encontradas, Yasmin reconhece que seria pior sem o SUS, que tem como política pública o acesso da população à saúde gratuita, por isso, defende melhorias. “Pelo custo, nem todo mundo tem condições de pagar um plano de saúde. Eu acho que o caso seria a melhoria do SUS, porque não tem muita diferença, quem tem convênio e quem passa pela rede pública, porque quem passa no particular também encontra dificuldades. Você marca consulta, demora. A única diferença do convênio é que você marca tem médico, no SUS você marca e no dia o médico falta, então, tem tudo isso”, compara.

Outro ponto defendido por ela, seria o foco no atendimento, que deveria ser mais rápido, com médicos mais preparados e valorizados. “Não é só colocar o jaleco branco, estar escrito doutor e dar a receita. O tempo de espera também, porque você marca a consulta e você passar daqui há meses, quando não ligam remarcando um dia antes. Deveriam ser mais cuidadosos com os pacientes”, avalia.

O futuro dos serviços públicos e o governo de Bolsonaro

Yasmin se preocupa com seus direitos, sobretudo, o diz respeito ao acesso ao SUS, já que em sua opinião, a política defendida pelo presidente Jair Bolsonaro parece não ser voltada para os pobres e para a valorização de serviços públicos usados por essa parcela da população. “Ele não precisa do SUS, nem a família dele. Muita gente se ilude que ele vai se preocupar com os pobres e negros, pelo o que eu sei do Bolsonaro, ele é racista. Você acha que ele vai melhorar o hospital público sabendo que tem uma fila de negros lá? Pelo contrário”, conclui.

Bolsonaro já deu declarações preconceituosas em sua trajetória política. Em palestra realizada no Clube Hebraica, em São Paulo, em abril de 2017, falou pejorativamente contra quilombolas. “Eu fui num quilombola em Eldorado Paulista. Olha, o afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada! Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gastado com eles”.

Sobre o medo de Yasmin em relação aos baixos investimentos no SUS, que vem de outros governos, mas tem se aprofundado na gestão de Bolsanaro, números revelam essa tendência desfavorável para quem é pobre e precisa deste serviço.

O Nós, fez um levantamento com políticas implementadas pelo atual governo que reduzem investimentos na saúde pública.

Listamos 12 fatos que mostram o desmonte da saúde no Brasil, entre os itens de desinvestimento estão cortes no orçamento, redução de trabalhadores na área da saúde e desmonte do programa Farmácia Popular.

https://nosmulheresdaperiferia.com.br/noticias/alem-do-coronavirus-11-fatos-mostram-como-o-desmonte-do-sus-afeta-a-periferia/

Yasmin ainda sangra

A reportagem do Nós acompanhou a história desta usuária no ano de 2019. Os sintomas voltaram e até a conclusão desta reportagem ela ainda não tinha conseguido a cura para o seu problema de saúde. Yasmim segue sangrando.