“Tenho que fazer valer a existência de todas nós”, afirma líder do Mães de Maio

"Chegou a hora desses acadêmicos acordar para a vida, não pensar só no seu bolso. Na teoria é muito bonito"

Por Lívia Lima

10|05|2016

Alterado em 10|05|2016

Fiz o primeiro contato no fim de abril. Mandei um inbox. Muitos dos meus heróis morreram, de overdose ou não. Outros tantos estão vivos e eu sou muito agradecida por muitos deles fazerem parte da minha rede social, e para mim o social possui dois sentidos, o de relacionamento, e também o de envolvimento e defesa de uma causa. Entre os membros da minha lista, está Débora Maria da Silva, líder do Movimento Mães de Maio.
Em abril, Nós, mulheres da periferia fez uma reunião para definir nossos projetos e também pautas e eu defendi muito a importância de falarmos sobre os 10 anos dos crimes de maio de 2006. “Tudo bem Lívia, mas você fica responsável por organizar”. Assumi a responsabilidade de editar e produzir o conteúdo desse nosso especial. E no mesmo dia mandei a mensagem para a Débora. Perguntei quando ela estaria em São Paulo e se poderia me encontrar para uma entrevista.
Ela estaria apenas em São Paulo na semana seguinte, ficamos de conciliar nossas agendas, mas surgiram novos  compromissos, atividades em outros locais, e eu fiquei no aguardo de uma resposta. Ao mesmo tempo, ‘confirmei presença’ no evento “Nós Outras – Nenhuma fica para trás”, na Matilha Cultural, no dia 4, que ia discutir violações institucionais de gênero, especialmente do sistema de justiça criminal. Débora faria parte de uma das mesas de debate. O jeito era encontrá-la por lá.
Cheguei mais tarde do que tinha previsto, mas por sorte o debate ainda não havia começado. Fui direto me apresentar pessoalmente para a minha amiga virtual.

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Débora Maria da Silva, do Movimento Mães de Maio | crédito: divulgaçao


 
-Podemos conversar antes de começar?
“Sim, mas pode ser lá fora? Ainda não tive tempo de fumar”.
Atravessamos a rua e um grupo de companheiros e companheiras  de luta de Débora conversava lá fora. Entre o apoio às ocupações dos secundaristas, contra a maçonaria que está tomando o poder, o perigo dos alimentos transgênicos, consegui um tempo para iniciar nossa conversa sobre as atividades em lembrança aos 10 anos dos crimes de 2006.
“A lei (Lei 15501/2014, que instituiu a ‘Semana Estadual das Pessoas Vítimas de Violências no Estado de São Paulo’) foi sancionada em setembro de 2014 pela Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa de São Paulo. O que eu mais almejava era que fosse criada essa lei para lembrar os nossos filhos. A gente luta por essa memória. Para que nunca mais se repita. Por nossos filhos que pagaram por uma guerra que não foi nossa. Em uma semana se mataram mais de 500 meninos, negros, pobres,  de periferia, todos indefesos. No meu entender como mãe, nada mais justo no país genocida da nossa população, nosso povo, que é esquecido das políticas sociais, seja lembrado”.

“Vamos lançar um memorial no quilombo do Jabaquara, porque nossos ancestrais também têm que ter memória. Para todo mundo saber que a reparação não foi feita, a marcha fúnebre prossegue no nosso país, principalmente na nossa periferia, que é um pouco da senzala”.  

– Quantas são as Mães de Maio?
“As Mães de Maio não tem numeral, porque o Brasil e o Estado de São Paulo produzem Mães de Maio todos os dias. A gente tá aqui conversando, fazendo essa entrevista e a gente sabe que em algum lugar, nas favelas, tá sendo um menino executado. Nós temos que gritar para essas mulheres se levantarem e dizer: basta! Não cair no conformismo e achar que é natural, mesmo os que têm conflito com a lei, achar que essa é a vida que ele escolheu, e elas não entenderem politicamente o que é essa prática de extermínio do pobre e do negro nesse país racista, classista, onde os brancos querem ser mais brancos, os ricos querem ficar mais ricos, e querem essa paz de cemitério, essa paz que oferecem para nós, paz pálida, patrocinando o extermínio dos nossos filhos”.
Somos interrompidas e nos avisam que o debate vai começar. Combinamos de terminar a entrevista após o evento. Na mesa, além de Débora, estavam presentes Vera Lúcia dos Santos, também do Movimento Mães de Maio, e Irone Santiago, da Rede de Mães Contra a Violência do Rio de Janeiro.
Em maio de 2006, Vera Lúcia teve sua filha, Ana Paula dos Santos, de 20 anos, assassinada por um homem encapuzado em São Vicente. Ela estava grávida e o parto aconteceria no dia seguinte. Levou um tiro na cabeça e outro na barriga. O filho de Irone, Vitor Santiago Borges, de 29 anos, foi baleado no ano passado por militares da Força de Pacificação do Complexo da Maré, na zona norte da capital carioca. Ele teve uma perna amputada e ficou paraplégico.
Entre os depoimentos tristes destas mães, e entre lágrimas, delas e também dos que as escutavam, Débora mais uma vez fez um discurso enérgico, com duras críticas à polícia, ao Estado, à mídia, e até mesmo ao que o público presente representava para ela.

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Mães de Maio na Praça da Sé. | Crédito: divulgação


“Dia 12 vai completar 3650 dias sem dormir, porque o Estado não deixa a favela dormir. Mas enquanto tiver vida, tem resistência. Eu, como fundadora desse movimento, digo, repito, vou gritar do túmulo, vou levar esse legado prometido paro meu filho, que a desmilitarização é necessária. A luta das Mães de Maio é agora pela desmilitarização. Só as Mães iam gritar contra a violência da polícia. Mas aí depois das manifestações de junho (de 2013), vocês sentiram quem é essa polícia que faz vítima na favela. Quando eu falo vocês, falo no geral, porque a bala de borracha, a bala que é atirada no asfalto, não é a mesma que é atirada na favela, na periferia. A da favela e da periferia mata. A favela é uma máquina de moer gente”.
“Há dez anos, em uma semana, essa polícia matou mais de 600 jovens. Falar em número não dá a dimensão. No segundo ano dos crimes de maio, nós colocamos 493 caixões em frente à prefeitura de São Paulo. Era o número que a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, fascista, deu para a população calar a boca, nas pedaladas que eles fazem. A chacina é bem vinda para a Secretaria de Segurança. As pedaladas não são dadas só no Planalto. Se mata cinco, seis em uma noite na quebrada, a contabilização é de uma vítima. Quando fizeram uma pesquisa depois de três anos, aí se tem 532 (mortes). Com cinco anos se faz uma pesquisa com a Universidade de Harvard, veio mais de 600”.
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“A vala do cemitério de Perus não acabou na ditadura, porque a ditadura não acabou. A gente denuncia as valas clandestinas. Nessas valas eu vejo também meu filho. Eu vi meu irmão que há trinta anos está desaparecido pelo Esquadrão da Morte. O Ministério da Justiça não deixou a Universidade de São Carlos mostrar o resultado da pesquisa sobre os crimes de maio. No mês todo, mais de 1300 pessoas. 1300 mães. A polícia do Brasil é uma verdadeira fábrica de cadáver. E a gente tem que dar um basta. Mas não só as Mães. O dia em que todos tomarem as ruas e dizerem: basta de genocídio, antes que caia no meu telhado, aí a gente vai ter a verdadeira revolução. Militante não pode ficar em quadradinho, ter só uma bandeira. Movimento Mães de Maio não tem bandeira. É uma década sem resposta. Eles continuam matando, deu certo, ninguém foi punido”.
“Os crimes de maio já produziram mais de 84 TCCs (trabalhos de conclusão de curso) e 32 teses. A gente recebe um telefonema desses profissionais que colocaram um lacinho no canudo deles que pinga sangue, com a nossa história, com a história dos nossos filhos? Chegou a hora desses acadêmicos acordar para a vida, não pensar só no seu bolso. Na teoria é muito bonito. Passa uma semana dentro da favela, na periferia, que vocês vão sentir o drama. Quem eram os meninos assassinados? Quem eram os meninos desaparecidos? Eu enterrei meu filho. Dez anos e a ficha não caiu. Porque em 3650 dias eu vejo meu filho cair todo dia nas favelas, na periferia”.

“A mídia tá muito em cima dos 10 anos. É uma maratona de entrevistas que mexe com as feridas, sangra. Nós tentamos democratizar a mídia. Ninguém põe palavras na nossa boca. Até o rótulo ‘Ataques do PCC’ nós fizemos mudar para ‘Crimes de Maio’. A mídia sabe do silêncio do governador Geraldo Alckmin que não quer tocar no assunto. Do secretário de segurança. Falam que cada caso é um caso. Nunca será, porque não foi na hora de matar, foi geral, não escolheram quem ia morrer (…). A gente luta contra as fardas. Atrás de cada farda tem um capitão do mato”.  

Após o tempo dedicado às falas, duas pessoas fazem perguntas. O rapaz pergunta de que forma as Mães de Maio enfrentam a cobertura jornalística sensacionalista e policialesca dos programas de TV, como os do Datena. A moça questiona como elas fazem o atendimento para novas vítimas de crimes violentos.
“Contra o sensacionalismo? A única solução é desligar a TV”. Sobre o acolhimento às famílias de vítimas, Débora menciona o apoio dado aos familiares de Luana Barbosa, espancada e morta por policiais em Ribeirão Preto. (O Nós, Mulheres entrevistou a Roseli, irmã de Luana. Veja aqui.)
Finalizado o debate, começa a apresentação musical. E minha disputa para conseguir um momento para terminarmos a entrevista. Entre abraços, cumprimentos, pessoas interessadas em apresentar projetos, pegar contato. “Esse é o meu número, é o do ZAP (WhatsApp)”.
Subimos para a área superior do espaço da Matilha Cultural, mais reservado e com lugar para sentar. Veja aqui como foi a entrevista.