Sâmia: ódio é ferida aberta do pós apartheid na África do Sul

A violência entre irmãs e irmãos negros é resquício da colonização e consequência da desigualdade social e do neoliberalismo.

Por Sâmia Teixeira

Na África do Sul, ataques de grupos xenófobos ocorrem com certa frequência e este movimento de ódio é sempre motivo de muito temor entre migrantes e refugiados. 

No país, cerca de duas milhões de pessoas vieram de países vizinhos. Muitas delas chegaram à África do Sul há décadas, acreditando poder viver em melhores condições numa terra de promessas sociais progressistas.

No entanto, como qualquer país colonizado, dominado e explorado economicamente, a transição do governo para o fim do apartheid não conseguiu resolver questões mais profundas, que envolvem as marcas da colonização, a segregação histórica, a desigualdade social e o modelo econômico. 

Eve, uma congolesa de 30 anos que vive na África do Sul, é militante do CRM (Congolese Renaissence Movement). Ela conta que vivenciou inúmeras manifestações violentas de xenofobia desde que chegou ao país, ainda adolescente.

Um dos ataques que ela sofreu ocorreu em dezembro de 2020. A militante conta que foi atacada num conhecido local de comércio, a Feira de Latra. Durante o episódio, grupos de sul-africanos exigiram que ela recolhesse suas mercadorias e abandonasse o local. 

Em fevereiro deste ano, a ofensiva foi mais grave e Eve teve toda sua mercadoria roubada. Segundo ela relatou, pessoas foram feridas e mortas neste incidente.

Dados de violência

Políticas de combate à xenofobia são escassas no país e apenas em 2019 foi incluído ao relatório anual do SAPS (South African Police Service) ocorrências criminais motivadas por “antagonismo em relação aos estrangeiros”. Dentro desta categoria, foram relatados, em 2019 e 2020, 22 ataques comuns, 36 agressões com a intenção de causar danos corporais graves, 9 tentativas de assassinatos e 8 assassinatos consumados. 

Outro dado a ser observado quando o assunto é xenofobia, são agressões motivadas por conflito étnico e racismo. Este último, teve registrados 38 casos de ataques comuns, 19 agressões com a intenção de causar danos corporais graves e 1 tentativa de assassinato.

Como este é um problema pouco discutido, sobretudo quando se trata de criar políticas públicas para que seja solucionado, os números de relatórios policiais provavelmente são maiores do que os registrados. 

Perseguição institucionalizada

Eve explica que os sul-africanos argumentam que imigrantes roubam empregos, oportunidades e precarizam os serviços. Essa insatisfação, que deveria ser colocada em questão com o governo, é direcionada de maneira injusta aos cidadãos de outras regiões do continente africano que residem no país.

As manifestações de ódio contra essa população chegou a ganhar um nome: “Dudula”. O último evento em massa do tipo, de violência e intimidação, se deu em 16 de junho último.

Uma liderança não identificada deste movimento falou ao telejornal local, que a ação acontecia em conjunto com a polícia, para “prender e extraditar estrangeiros”. Esse discurso nacionalista e policialesco chegou a ser utilizado pelo governo.

As ações foram descritas nas redes sociais, por simpatizantes e defensores do movimento, como um processo necessário e urgente de limpeza no país. As hashtags “SouthAfricansFirst” [Sul-africanos em primeiro lugar] junto da principal, #Dudula, chegaram aos trending topics.

Neste último ataque em massa, a região mais afetada pela onda de violência xenofóbica foi Soweto, onde muitos migrantes foram expulsos de suas casas e tiveram pertences destruídos e saqueados.

Negras e negros contra negras e negros

A violência praticada por sul-africanos contra suas irmãs e seus irmãos negros é mais uma evidência de que a estrutura racista e desigual do apartheid permanece nos dias de hoje. 

Ao conversar com Eve, ela utilizou como referência, sobre este aspecto, a reflexão de um ativista sul-africano chamado Julius Malema, que considera que os cidadãos que cometem tais ataques são pessoas que sofrem de “ódio a si mesmos”. E isso seria efeito de um processo histórico de colonização e exploração.

Eve acredita que este “ódio a si mesmo” nasce da dura realidade vivida por todos negros africanos, que mais sofrem no mundo com a discriminação e a xenofobia. “Na minha opinião, o que está por trás de todo esse ódio são o capitalismo e imperialismo. Se há ódio entre irmãos, negras e negros, é por causa da fome, da miséria, do desemprego, que por décadas enfrentamos”.

Para as mulheres migrantes, em particular Eve fala das congolesas, ela conta que maior parte delas trabalham como autônomas, até mesmo pela dificuldade de acesso aos empregos para migrantes, e que muitas são as responsáveis pelo sustento da família.

“Somos em grande parte mães solteiras, que mesmo sob o temor da pandemia ou dos ataques xenofóbicos, precisamos nos submeter aos riscos. Se ficarmos em casa, como iremos alimentar nossa família? O que as crianças irão comer? Aqui você nunca sabe onde ou quando os ataques podem acontecer, mas não podemos evitar os riscos”, compartilha a ativista congolesa.

Para Nadine Gordimer, escritora sul-africana, a África do Sul é uma nação que nasce do sofrimento. Supostamente livre do apartheid e da dominação de uma elite branca, ela refletia sobre como seriam as relações dos sul-africanos com seus irmãos negros no futuro.

Para ela, qualquer branco sul-africano deveria esperar que um negro, proveniente de qualquer outro país da África, fosse considerado pelos negros sul-africanos como um irmão, muito mais irmão do que o próprio sul-africano. “Nenhum elo pessoal de lealdade, amizade, ou mesmo de amor mudará tal fato”, previa.

Para a escritora, “se tivermos que nos sentir primeiro brancos e só depois africanos, então seria melhor não continuar na África”.  Talvez, para que este sentimento seja de fato realidade, é preciso olhar para trás e para nossas feridas abertas. É sob nossas cabeças, sob o povo pobre, que os escombros históricos pesam.

É preciso buscar o topo, confrontar os privilégios dos de cima, para que possamos verdadeiramente respirar e sentir na pele o calor do sol, que é de todas e todos.

Sâmia Teixeira, jornalista e e pesquisadora sobre a Palestina

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