Por que não faz chapinha? Elas escreveram no corpo as frases que costumam ouvir

Exposição “CATARSE” integrou a campanha 21 dias de ativismo pelo fim do racismo e da violência contra a mulher, realizada entre 5 e 25 de março, em Mogi das Cruzes.

Por Redação

27|03|2018

Alterado em 27|03|2018

 Por Mara Vidal

A exposição fotográfica “CATARSE”, de Lethicia Galo, 29 anos, é composta por retratos de mulheres que sofreram violência de gênero e mulheres e homens negros vítimas da violência racial, os quais escreveram em seus corpos frases que lhes foram ditas pelo outro, ou seja, o agressor ou a agressora, o protagonista da dor, da discriminação, do machismo, do racismo.

Desse entendimento vem o nome da exposição, “CATARSE”, projeto que integrou a campanha 21 dias de ativismo pelo fim do racismo e da violência contra a mulher, realizada entre 5 e 25 de março, em Mogi das Cruzes.

Lethicia conta que refletiu bastante sobre o conceito da exposição e que a incomodava a ideia de fazer as pessoas reviverem suas dores e relembrarem as situações de violência vividas. Mas hoje entende que foi também um processo de ressignificação e de transformação de sentimentos para essas pessoas.

“Foi um processo difícil para mim que fiz as fotos, para toda a equipe que participou da produção e, principalmente, para as pessoas que falaram sobre as violências sofridas. Foi um momento de expor histórias, compartilhar o que as levaram a fazer a escolha de cada frase e, de alguma forma, reviver suas dores”, lembra a fotógrafa.

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Projeto Fotográfico de Lethicia Galo © Lethicia Galo

Mas Lethicia conta que, após as sessões, ouviu dos participantes o quanto foi importante para que pudessem ressignificar e superar a dor, transformada agora em fotografia. “Depois de terem feito a foto, contado e exposto seus sentimentos, conseguiram olhar de uma outra forma para aquela dor. Ouvi também que a imagem retratada trazia o sentimento de estarem empoderadas, por terem conseguido expressar, por terem o domínio da frase que lhe foi dita, gerando um sentimento de superação”, explica ela.

Quando foi produzir as imagens com as pessoas negras, a fotógrafa percebeu que algumas delas não quiseram falar sobre o assunto e que ainda tinham fortemente o sentimento de dor, pelo racismo conter uma violência imensurável repercutindo na vida de quem a ouviu. “Frases que já falamos e que reproduzimos enquanto brancos para as pessoas negras destrói e diminui não só a elas, mas a nós mesmo que pronunciamos, diminui a sociedade. Precisamos pensar sobre isso, pois o racismo também nos afeta”, afirma.

“Frase recorrente que rebaixa, que conota o racismo quando qualquer pessoa negra comete erro ou equívoco e é rebaixada, e os negros são rotulados, mas se o mesmo erro é cometido por uma pessoa não negra isso não acontece”. Vânia, professora aposentada da rede estadual.

“Sempre me dizem esta frase resumindo a minha beleza, a minha existência apenas do meu sorriso. Eu acho que eu não me resumo no meu sorriso. E uma outra situação que mais me deixa chocada com relação ao racismo, não só pra mim, mas acho que as pessoas negras passam por isso é quando você sabe que está qualificada para uma vaga de trabalho e as pessoas não te aceitam por ser negra, por seu cabelo ser black, por ser gorda”, afirma Tamara Fernandes, 26 anos, orientadora social.

“Muitos acreditam, realmente, que o preto quando não está preso, está armado. A frase tem duplo sentido: para as piadas com o cabelo afro que mascaram o preconceito e com a realidade de negros na nossa sociedade. Trabalhei em uma empresa, que atendia outra grande empresa, meu superior pediu para que eu alisasse meu cabelo para comparecer a uma reunião com esse cliente. Para mim essa exposição é um grito coletivo, um caminho para mudar alguma coisa na sociedade em que vivemos! Dar voz a uma luta de uma maneira artística pode transformar a “guerra” em algo mais leve. Pode tirar a venda de quem não consegue enxergar a realidade que vivemos”. Camila Francini, produtora e roteirista.

“O racismo é como se fosse lutar contra a morte, as pessoas vão te rebaixar, ficar contra a tua cor, mas a gente tem que lutar contra isso”, fala Nicolas Thompson, 13 anos, estudante e jogador de futebol de categoria de base do InterMogi.

Nicolas já foi chamado de macaco por pais de crianças jogadores da mesma idade que ele, em um jogo de futebol durante uma final e também na escola particular em que estudou, por um aluno da mesma idade. Nas duas situações a marca de se sentir inferiorizado, de ver que as pessoas têm a intenção de rebaixá-lo. O mais preocupante é ver quão cruel são os adultos, os pais das crianças jogadoras, e o despreparo das escolas ao achar que é natural uma criança xingar a outra de macaco, atitudes desrespeitosas impregnadas de preconceito e racismo.

Os fatos mostram como o racismo institucional está presente nas instituições escolares, públicas e privadas. Toda a sociedade tem a responsabilidade por não reproduzir esse comportamento abusivo e racista, por isso é fundamental atuar no preparo de professores, funcionários de escola, treinadores, árbitros, para que não normalizem estes tratamentos e  construam a cultura das relações igualitárias com respeito às diferenças.

“A primeira vez que me viram com cabelo cacheado crespo falaram “nossa você já viu chapinha, você conhece chapinha”, isso me marcou demais, eu chorei dia e noite. Foi difícil demais, o racismo faz isso com a gente, tenta nos destruir. E para quem diz que eu sou morena, há um engano eu não sou morena, eu sou negra. Resisto as provocações, ao preconceito ao racismo, eu resisto a todo mundo que vê que eu não sou o padrão da sociedade, que estou fora dos padrões impostos. Resisto porque sou mulher, porque sou negra”. Agatha Fernandes, 22 anos, estudante de logística.

Entre os estereótipos que marcam as mulheres negras é o de que toda negra é uma passista de escola samba, principalmente se for alta, magra, como se isso fosse um padrão.

Pra os homens negros, o estereótipo do pagodeiro e jogador de futebol é outra naturalização que Yrapoan Vidal, 44 anos, contesta, primeiro pelos equívocos contidos ao achar que todo interprete e compositor de samba podem ser  denominados desta maneira, pois para os mais antigos pagode era um encontro, um momento de tocar e cantar samba sem compromisso, com o tempo se tornou um gênero dentro do samba. “E Pelé só existe um, assim como Mussum, Louis Armstrong, Barack Obama, e assim por diante. Temos que entender que o homem negro e a mulher negra têm a sua individualidade, nascemos e construímos nossa história individual e coletivamente, mas não somos iguais, temos capacidades, habilidades e genialidades diferentes, assim como as pessoas brancas”, afirma o cantor e compositor.

“Preto, pobre e bixa são palavras que ouvi no decorrer da minha vida! São palavras de alerta!!! Alerta do que eu iria enfrentar, pela minha orientação sexual. Filho de mãe solteira e criado com muito esforço, minha educação foi muito realista, minha mãe sempre expôs que nada seria fácil e que se eu não quisesse fazer parte das estatísticas teria que lutar e tudo dependeria só de mim. É cansativo ter que provar, esfregar na cara da sociedade discriminatória em que vivemos, que a minha condição não limita minha capacidade só me fortalece e faz de mim mais forte ainda!”, afirma Felipe Moreira Sadrak, makeup artist.

Felipe destaca que quando mais jovem ,não tinha a percepção de que algumas situações que vivenciou eram de racismo, mas hoje tem certeza de que pessoas racistas cruzaram e cruzam o seu caminho. “Desde adolescente gostei de afrontar pelo meu visual, com 14 anos eu já tinha Black Power que cultivei até os meus 20, quando eu cortei fui a um determinado lugar e uma senhora me disse depois de ter cortado meu cabelo que eu estava lindo, que o corte de cabelo tinha me feito muito bem, pois aquele cabelo que estava usando era vulgar, chamava muita a atenção, “Não recomendado na sociedade”, segundo ela. Então se você é preto, bixa e pobre faça disso a sua arma para destruir os obstáculos que encontrará em seu caminho. Não é fácil, mas o que não é superado com dificuldade não tem gosto de vitória!”, afirma Sadrak.

A ignorância sobre as religiões de matriz africana fez e faz com que as pessoas julguem erroneamente, rotulem de forma discriminatória, pejorativa e desrespeitosa não só as/os adeptas/os da atualidade, mas principalmente negras e negros,  se tornam os principais alvos do racismo religioso, por serem os que estruturam e deram origem as comunidades afro religiosas, historicamente marcadas em nosso país pelo ódio religioso, que desumaniza essas pessoas e seus atos.

A mesma falta de conhecimento ou a generalização errônea desconsidera o papel primordial do alimento para essas religiões, sempre atuarão com o alimento enquanto oferenda às divindades, mas acima de tudo tem a função de nutrir crianças, mulheres e homens negros que foram jogados nas ruas pós abolição há 130 anos, e sempre souberam do valor do alimento, do significado de cada parte de um animal, para não ocorrer o desperdício. Infelizmente, “Macumbeira, coisa de preto” retrata como são tratadas mulheres, crianças e homens quando portam suas contas ou ilekes junto ao seu corpo, símbolo de sua ligação ao orixá, divindade ancestral. Ninguém é ofendido ao portar um terço ou uma bíblia. Ninguém é discriminado na sala de aula e comparado ao demônio que é uma invenção da sociedade que nada tem de ligação com os negros. E realmente macumba é um instrumento musical, um tipo de tambor que nesta foto quer ressoar a existência e resistência de quem traz na cor da pela a sua ancestralidade e a coragem lutar para que o respeito estabeleça a igualdade e o reconhecimento da população negra que fez e faz o desenvolvimento dessa nação.

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Jornalista Mara Vidal

©Lethicia Galo

Mara Vidal é jornalista, pesquisadora e ativista feminista negra.

“Existo porque resisto na pele, na dor, na cor, na raça. Em meu corpo a marca da tua fala, você, pessoa não negra, que me rotula, que diz que sou diferente, tua visão é turva, estereotipada, preconceituosa, discriminatória, racista, excludente, desumanizadora. Marco em meu corpo a tua fala ignorante e superficial de quem desconhece a profundidade da minha história, da minha ancestralidade, da minha capacidade, do meu trabalho e meus feitos, da minha cultura, dos meus valores, das minhas rezas e divindades, da minha realeza, pois não descendo de escravos, e sim de rainhas e reis, princesas e príncipes, de grandes clãs espalhados pelo continente africano”.

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