Mulheres, o direito à moradia e a violência doméstica

O desafio não está apenas em sair de casa, mas ter para onde ir “Eu me separei para salvar eles [filhos]. Porque ele [marido] bebia muito e me agredia: verbalmente, fisicamente… Jogava as coisas. Poderia pegar em uma das crianças. E aí? Eu alimentava aquilo comigo, eu pensava: ‘Meu Deus, quando eu fizer 30 anos, […]

Por Redação

28|05|2014

Alterado em 28|05|2014

O desafio não está apenas em sair de casa, mas ter para onde ir
“Eu me separei para salvar eles [filhos]. Porque ele [marido] bebia muito e me agredia: verbalmente, fisicamente… Jogava as coisas. Poderia pegar em uma das crianças. E aí? Eu alimentava aquilo comigo, eu pensava: ‘Meu Deus, quando eu fizer 30 anos, eu vou dar um jeito na minha vida’. Eu pensava isso o tempo inteiro, mas só no pensamento. E não é que eu fiz mesmo! Esse negócio de pensamento positivo é verdade. Quando eu fiz 30 anos, eu “casquei” fora. Eu saí com as crianças, com os quatro.”
Esse é o relato da auxiliar de limpeza Jovelina Almeida, a Jô, 47 anos, que decidiu dar um jeito em sua vida e se libertar do marido violento. Criar os quatro filhos sozinha deu a ela força, mas não tirou de Jô a leveza, o brilho nos olhos e o sorriso na boca.

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Jô e a filha Daiana Almeida Pereira, 20, em frente da casa em que moram de aluguel. Créditos: Patrícia Silva.


Em 1997, Jô deixou a casa em que morava durante os 13 anos de casamento e, com a ajuda dos irmãos, pegou as crianças escondida do companheiro e nunca mais voltou.
A história de Jô revela como a violência doméstica e o direito à moradia estão relacionados. Em muitos casos, mulheres se submetem à agressão por não ter para onde ir e acabam compondo as estatísticas como vítimas fatais nas mãos de seus parceiros.
No Brasil, de 2001 a 2011, estima-se que ocorreram mais de 50 mil mortes por violência doméstica. Em estudo do Instituto de Pesquisa Aplicada (Ipea) de 2013 foi analisado o impacto da Lei Maria da Penha para identificar quantas mulheres morriam por agressões, chegando à conclusão de que não houve redução das taxas anuais de mortalidade. “Comparando-se os períodos antes e depois da vigência da Lei, as taxas de mortalidade por 100 mil mulheres foram 5,28 no período 2001-2006 (antes) e 5,22 em 2007-2011 (depois da lei)”, aponta o estudo.
Apesar de avanços nas políticas públicas para dar suporte às mulheres vítimas de violência doméstica, sua implementação é lenta frente ao número de crimes contra as mulheres que não para de aumentar.
De acordo com dados da Secretaria de Políticas para as Mulheres, órgão do governo federal, há no país 115 núcleos de atendimento para a mulher vítima de violência; 207 centros de referência, que oferecem atenção social, psicológica e orientação jurídica às mulheres; 72 casas abrigo – que acolhem as mulheres vítimas de violência doméstica, 51 juizados especializados em violência domiciliar e 47 varas adaptadas.
Passo a passo para encontrar serviço na Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres
O município de São Paulo possuiu apenas sete casas abrigos, número pequeno frente ao universo de 2.377 mortes de mulheres paulistas registradas de 2009 a 2011.
Negar o direito à moradia também é uma violência
Jô sabe que escapou de fazer parte desse número alarmante de mortes. Superou uma barreira, mas não a outra, a da falta de moradia. Desde que se separou do marido violento enfrentou muitos desafios e ainda não conseguiu comprar sua casa própria.
Jô recorda daquele tempo com a firmeza de quem sabe que foi o melhor a se fazer contra a violência. No dia que saiu de casa, separou apenas uma peça de roupa para cada criança, evitando o volume, já que o marido poderia desconfiar. Cuidadosa, antes de tomar o ônibus, fez questão de passar na casa de uma amiga para banhar cada um dos filhos. Depois, seguiu caminho até o Grajaú (zona sul) na casa de uma irmã. “O pessoal olhava assim para mim e falava: ‘Aí meu Deus, coitada dessa mulher. Cadê o pai dessas crianças, meu Deus?’. Eu pensava: ‘Mal sabem eles que eu estou exatamente fugindo do pai das crianças’”, lembra, com risos.
Hospedou-se por pouco tempo na casa da irmã. Logo foi morar de aluguel em Jundiaí (região metropolitana de São Paulo), com ajuda dos familiares, até conseguir um emprego. Ficou por lá por mais de um ano.
O desemprego a fez precisar da ajuda de outro irmão, que morava em Caucaia do Alto – Cotia (região metropolitana de São Paulo), ele deu abrigo a ela na garagem de sua casa. Foi lá que começou a trabalhar e conseguiu alugar outro espaço para ela e os filhos. Não demorou muito, Jô foi para um emprego na capital paulista, quando foi viver na Vila dos Remédios (na área localizada em São Paulo).
Preços altos
A via sacra de Jô em busca de um lugar para morar não teve fim aí. Após oito anos na residência, a especulação imobiliária bateu em sua porta. A região ficou valorizada, a dona da casa decidiu modernizar seus imóveis e ampliar a oferta. “A proprietária tem várias residências naquela rua. Eram casas pequenas, que agora  estão transformando em grandes residências. Hoje vem a demolidora e constrói residências grandes, tipo sobrado. Em duas ou três casas, ela faz um sobrado só. Eles reconstroem imóveis grandes para alugar. Eles não vendem.” Novamente foi atrás de outra residência no mesmo bairro, Vila dos Remédios na área localizada em Osasco e vive ali desde então.
Desenvolvido pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em parceria com o portal ZAP Imóveis, o Índice FipeZap revela que em junho de 2013 a valorização do metro quadrado dos imóveis anunciados no Brasil foi  mais que o dobro da inflação pelo IPCA  (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) projetada para o período. Enquanto que a estimativa para o índice oficial de alta de preços foi de 3,2%, o preço do metro quadrado anunciado aumentou 7,3% de janeiro a julho. A alta mensal em São Paulo foi de 1,3%, e o preço do metro quadrado anunciado médio foi de R$7.361. Nos últimos anos, a especulação imobiliária tem avançado de forma avassaladora na Cidade de São Paulo. A valorização média dos terrenos, desde  2008, foi de 192% e o aumento dos aluguéis de 93%, segundo o Índice Fipe/Zap.
Casa dos sonhos: “Se eu tenho a oportunidade de morar nesse bairro, por que eu tenho de ir lá para longe?”
Jô ainda não tem sua casa própria e o aluguel é mantido com a ajuda dos filhos. Ela paga o preço por morar em um bairro mais estruturado e de fácil acesso. O aluguel da casa número 22, pintada de verde água, bem acabada, localizada em uma rua sem saída, é maior do que o salário de Jô.
Atualmente, Jô tem uma renda de R$ 800. Três filhos ainda moram com ela. A renda da família soma, em média, R$ 1.100 para cada um, no máximo. A família inteira ganha menos de R$ 3.000. O aluguel custa R$ 800, fora as demais despesas. “Um dos meus sonhos seria ter a minha moradia, conseguir um teto. Um dos motivos de não ter conseguido foi porque, primeiro, eu fiquei sozinha. Eu tive de criar os filhos, etc., a baixa renda e, também, as condições que eles [do poder público] oferecem. Eles não dão prioridade para a classe trabalhadora, assalariada”, critica.
A auxiliar de limpeza também foi à procura de bancos para tentar um financiamento, mas disseram que a renda mínima para a casa que ela quer seria de R$7 mil. “Com um valor menor de renda você pode até conseguir, mas sabe Deus aonde. Em cidade do interior, bem na periferia. Porém, eu moro aqui nos Remédios. É um bairro de classe baixa, mas não comparado à periferia, é um bairro bem adiantado.”
Sua consciência diz que não está errada em querer morar melhor. “O que tem de mudar são as leis. Eles é que têm de se adaptar ao assalariado, ‘ao baixa renda’. Eles querem que os pobres, os mais humildes, vão cada vez mais para longe. Mais longe é mais barato e as pessoas sofrem mais, né?! Quer dizer, se eu tenho a oportunidade de morar nesse bairro, por que eu tenho de ir lá para longe? Se eles me oferecessem oportunidade, eu iria ter o meu imóvel aqui”, diz.