Lei que permite descer fora do ponto não é cumprida em SP, apontam coletivos

Lei que permite que mulheres e idosos desçam fora do ponto após as 22h ainda atravessa diversos desafios para realmente sair do papel e fazer parte do cotidiano das mulheres na periferia; movimentos criam campanha "Plaquinha no Ônibus".

Por Jéssica Moreira

29|05|2018

Alterado em 29|05|2018

Moradora de Guianases, zona leste de São Paulo, Amanda Vitorino, 26, todos os dias precisa passar por um trecho escuro na volta da faculdade. Um dia, quando faltou energia, a estudante de Direito pediu ao motorista que a deixasse parar antes do ponto, mas ele não aceitou e a estudante foi assaltada minutos depois no trajeto até sua casa.
Cansada de passar por essas situações, Amanda se somou a outras mulheres no projeto #SpParaMulheres e, juntas, lançaram a campanha “Placa no Busão“, que tem como objetivo tirar do papel a Lei 16.490 , sancionada em 2016, e que permite às mulheres e aos idosos descerem fora do ponto após as 22h da noite. A iniciativa é uma junção do Coletivo Cidadelas, Minha Sampa e a Rede Feminista de Juristas (#deFEMde), a qual Amanda é uma das integrantes.
Além da disseminação das informações acerca da lei por meio de material audiovisual, elas também criaram um abaixo assinado online para pressionar a SPTRANS. “A lei prevê uma multa de R$ 360,00 para o condutor que desobedecê-la. Não é favor, é direito”, afirma o texto da campanha, que já chegou a quase 2 mil mulheres.

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Mulheres podem descer fora do ponto de ônibus

©Leu Britto


“Mulheres têm medo da reação dos motoristas”
“Queremos levar o debate sobre a relação das mulheres com a cidade para o âmbito público e, a partir disso, pensar uma série de intervenções que tragam melhorias para as relações cotidianas das mulheres em São Paulo”, explica Amanda.
Uma pesquisa realizada pelo projeto com 140 mulheres de todas as regiões de SP mostrou que a lei ainda não acontece no cotidiano das entrevistadas. O levantamento revelou que 43% das mulheres que solicitaram o desembarque fora do ponto não tiveram seu pedido aceito. Em 54% dos casos, foi solicitada a parada ao motorista, mas o mesmo não parou alegando que não sabia da existência da lei.
“A pesquisa ainda revelou que muitas mulheres conheciam a lei, mas não solicitaram a parada fora do ponto com medo da reação dos motoristas e dos demais usuários porque a lei é pouco divulgada”, conta a estudante.

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Outra motivação para a criação da campanha foi a pesquisa “Um Raio X do Feminicídio em São Paulo“, organizada pelo Ministério Público de São Paulo (MPSP) e que analisou mais de 400 denúncias sobre a morte violenta de mulheres.
Os dados mostram que o horário em que os feminicídios acontecem são das 18h às 00h. Embora o maior número de mortes violentas contra as mulheres ainda ocorram dentro da própria casa da vítima, ao menos 8% acontecem em locais que são, usualmente, frequentados pelas mulheres, como o deslocamento entre a casa e o trabalho.
“Esses dados nos permitem contestar quaisquer falas que visem deslegitimar a mulher vítima,  pois nos evidenciam ainda mais que independe o lugar, o status, o que estava fazendo e etc, a questão principal da violência é o gênero, não permitindo qualquer apontamento que vise deslegitimar qualquer acusação quanto à vítima de crimes sexuais e outros”, aponta.
https://www.facebook.com/MinhaSampa/videos/981614885332197/
 
O Nós, mulheres da periferia entrevistou a estudante Amanda, que integra a Rede Feminista de Juristas (#deFEMde), para entender melhor a campanha e como toda a sociedade pode se envolver na luta por uma cidade mais segura para as mulheres. Leia a íntegra abaixo:
Nós, mulheres da periferia: Vocês criaram a campanha “Plaquinha no ônibus”. Vocês acham que essa lei funciona hoje? 
Amanda Vitorino: Atualmente, a lei não funciona da forma como deveria, em pesquisa realizada por nós, para dar início a essa ação, conseguimos mapear algumas deficiências. A pesquisa revelou que 43% das entrevistadas que solicitaram o desembarque fora do ponto nos moldes da lei não conseguiram. Em 54% dos casos, foi solicitada a parada ao motorista e este não parou alegando que não sabia da existência da lei. A pesquisa ainda revelou que muitas mulheres conheciam a lei, mas não solicitaram a parada fora do ponto com medo da reação dos motoristas e dos demais usuários, porque a lei é pouco divulgada. O que eu percebo pelo menos no bairro onde moro, é que os motoristas que permitem esses desembarques fora do ponto o fazem como ato de gentileza, de conhecer os passageiros pelos trajetos diários de sua linha e por conhecer a região em si e sentirem essa necessidade, mas não possuem conhecimento da lei e ainda não entendem a obrigatoriedade da mesma.
Nós, mulheres da periferia: Acham que com a placa a situação pode melhorar?
Amanda Vitorino: Acredito que com a colocação das placas a situação irá melhorar por inúmeros motivos. Primeiro porque o direito não alcança a todos, chega para nós, “meros mortais”, apenas as informações que, de alguma forma, interessa ao Poder Público. Por meio dessa campanha, promovemos essa informação, esse acesso ao direito de um modo geral, já que a lei abrange também pessoas idosas e mulheres trans. Além disso, a colocação das placas promoverá o conforto para a mulher solicitar o desembarque fora do ponto, sem medo da negativa do motorista ou da reação dos usuários, pois terão ao menos a segurança da informação, que estará pública e acessível. Também sabemos que, em muitos casos, os motoristas além de não conhecerem a lei, não permitem realizá-la por medo da fiscalização. Sendo assim, a placa trará melhorias para todos os pólos de ação: para os usuários do transporte público que poderão descobrir um novo direito, para a mulher que pode demonstrar a obrigatoriedade do seu direito e para o motorista e para o motorista, que agora também se sentirá seguro para tal ato, sem medo de punição ou coisas do tipo.
Nós, mulheres da periferia: Como é a cidade para as mulheres hoje e como vocês gostariam que fosse?
Amanda Vitorino: A cidade reflete e reproduz as opressões estruturais — machismo, racismo e de classe — e, historicamente, é um espaço construído por e para homens brancos. Nesse sentido, a cidade é um território de constantes conflitos no qual as mulheres têm diversas barreiras para ocupá-la e ressignificá-la. São Paulo hoje deixou de ser a terra de oportunidades para figurar como terra em que os sonhos de muitas mulheres são enterrados. Quando o assunto é o número de casos de violência contra mulher, a nossa cidade ocupa as primeiras posições em qualquer ranking, demonstrando claramente a violência diária que enfrentamos , vivemos e que são responsáveis pela morte de muitas de nós. É preciso pensar a dinâmica da cidade através de grupos que são considerados “minorias” para aumentar a sensação de acolhimento, conforto e segurança.
A foto que abre a matéria de autoria da jornalista Marina Lopes.
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