Ato-vigília na Av. Paulista no dia 24 de abril |Daniel Arroyo/Ponte

Precisamos falar sobre o luto coletivo nas periferias

Quem homenageia as donas Marias ou Seus Josés que, diante de uma pandemia, serão esquecidos sem direito sequer a um luto que abrace o coração de seus familiares?

Por Jéssica Moreira

21|05|2020

Alterado em 21|05|2020

Assisti ao último episódio de Greg News ( programa de televisão do humorista Gregório Duvivier que traz um olhar crítico e cômico para pautas do Brasil), cujo tema foi, curiosamente, leveza. Um spoiler? O vídeo fala sobre morte. Sempre me senti mal em pensar na morte com frequência, mas, diferente da Regina Duarte — criticada com razão em Greg News — eu faço questão de me guiar por meus mortos, meus ancestrais, e usar a arte como elaboração de luto.

A escrita foi e continua sendo minha válvula de escape. Mas após escrever alguns obituários de artistas e lideranças comunitárias das periferias, comecei a refletir: quem é que homenageia os rostos anônimos? Aqueles que não foram reconhecidos como líderes, mas lutaram bravamente pela própria sobrevivência?

Quem homenageia as donas Marias ou seus Josés que, diante de uma pandemia, serão esquecidos sem direito sequer a um luto que abrace o coração de seus familiares? Até a finalização dessa coluna, o Brasil já contabilizava 18.859 mortes em decorrência de Covid-19.  Quem homenageia os Joãos, que continuam sendo assassinados pelas mãos genocidas de um Estado que mata crianças e jovens por serem pretos? Só nesta semana, três jovens morreram em operações policiais na cidade do Rio de Janeiro.

A responsabilidade da mídia periférica

Penso sempre na minha responsabilidade enquanto alguém que se utiliza das palavras, seja por ofício ou por necessidade. Diante das dores da morte, o cuidado com a memória deve ser redobrado. É realmente muito forte a fala de Denise Risa, tia de João Pedro Mattos, 14, assassinado durante operação policial em São Gonçalo (RJ): “eu não vou deixar meu sobrinho ser lembrado como bandido”.

É claro que “bandidos”, como ela coloca, também mereceriam ter suas histórias contadas. Mas o que Georgia não quer é que a memória de seu sobrinho seja roubada para os achismos e estereótipos que, frequentemente, são pintados pela mídia tradicional ou, então, espalhados pelas correntes das mídias sociais.

Voltando ao Greg News, eu concordo com Gregório Duviver, quando diz  que a arte é um dos caminhos pelos quais podemos manter nossa sanidade mental e elaborar o processo de luto, tanto individual quanto coletivo. Mas isso só faz sentido quando a nossa arte ou nossa palavra pode, minimamente, maximizar o tom daqueles que sempre tiveram suas vozes abafadas.

A escrita como lugar de memória

Mas como fazer isso? Não sou especialista, tampouco tenho a intenção de criar uma receita sobre como cada um deve atravessar o luto ou transformá-lo em memória.  Aqui, compartilho apenas a minha experiência de dor e os caminhos que me ajudaram a sobreviver sem aqueles que amo.

Nos últimos seis anos, eu vivi a perda de cinco pessoas que viviam na mesma casa que eu. Primeiro foi meu pai, Tião, que partiu em apenas 20 dias, acometido por uma diabetes descompensada. Depois, foi meu Tio Tiago, em menos de 30 dias, por conta de cirrose tardia. Em seguida, a Tia Cida, de pneumonia. A vó Laurentina, de morte dita “natural”, aos 96 anos e sem sofrimento. E, há menos de quatro meses, meu primo Tiaguinho, de câncer, aos 31.

Vai parecer mórbido. Mas eu cresci indo ao cemitério. Meu tio João, um sepultador que enterrou até presos políticos na Vala Comum durante a Ditadura Militar, morava em frente ao Cemitério Dom Bosco, em Perus (SP) e o passeio de carro com meu pai era ir ao “cemity”, maneira como ele se referia ao local.

Nas idas, sempre olhava as lápides imaginando a história por trás de cada foto; tentando distinguir uma morte da outra, um rosto de uma frase e me perguntando por que havia flores em umas e, noutras, a ausência de lembrança na imagem preta e branca já apagada pelo tempo.

Eu cresci indo ao cemitério

Cresci assim, bem perto da morte, e com mais medo ainda dela chegar. Até que, em 2014, dias antes de eu embarcar para um intercâmbio, meu pai morreu de maneira súbita por conta de uma diabetes descompensada. O sofrimento de ver seu familiar num corredor de hospital não tem tamanho, nem pode ser descrito aqui.

Era a primeira vez que ouvia as saudades de dentro de mim.

É desesperador saber que você nunca mais vai encontrar com quem tanto ama.

O caminho do meu luto foi pedregoso. Eu precisei perfurar a barreira do nunca mais e buscar nas nossas memórias juntos um jeito de seguir a vida sem ele.

Nossos cafés da manhã cantando samba. As prosas na área no fim da tarde. Recorri à fotografia, inicialmente. Mesmo dentro da correria, sempre reservava um dia da semana para as nossas lembranças.

Recorri à Literatura. Todo dia 2 de cada mês eu escrevia um texto em memória ao meu pai, até completar um ano. Perguntava curiosidades à minha avó, então viva, e aos meus tios. Fazia o exercício de perceber o que de mim era dele, de onde vinha essa minha mania de gostar de samba e cerveja gelada na sexta-feira.

Foi o meio que encontrei para sobreviver com essa dor: guardando sua memória e mostrando isso ao mundo, me ajudando a criar conexões que fossem para além da presença física e entender que a história dele havia também me constituído. Vocês podem ler sobre o Tião no Nós.

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Jongo na Comunidade Cultural Quilombaque.

©João Brito/ Agência Mural

A ancestralidade presente

Mas, Jéssica, quer dizer que agora você “sarou”, não dói mais? Não. Na minha vivência, o luto é uma doença crônica. Eu aprendi a conviver com ela, mas nunca sara. E nesse período, que a morte está tão presente em todos os noticiários, a dor do luto também vem à tona.

Aliás, nenhum luto é igual. E, em cada um desses cinco que passei (estou passando), eu inventei novas “estratégias”, se é que podemos dizer isso dessa maneira. Uma música. Uma história. A lembrança de um dia. Recontar e ressignificar as memórias junto a outras pessoas.

Em outubro de 2019, nós, aqui de Perus, perdemos um dos nossos mestres, o educador José Soró. No dia que isso aconteceu, nos reunimos na Comunidade Cultural Quilombaque em volta de uma fogueira com tambores, cantando pontos de jongo.

Vocês sabiam que os povos negros escravizados se comunicavam com pontos de jongo para que o senhor da senzala não entendesse o que estavam dizendo? Aqui, a gente se conecta com nossa ancestralidade, para a memória dos que vieram antes nunca ser esquecida.

Há um jongo muito bonito que diz assim: “tenho saudades de quem se foi, tenho saudades de quem se foi. Saravá! Foi pra Aruanda”. Nas religiões de matriz afro-brasileira, Aruanda é sinônimo de um local espiritual, um ‘”paraíso” ou algo assim.

Longe de mim dizer que você precisa acreditar ou não nisso. Mas chego aqui dizendo que aí, dentro de você, que já perdeu alguém, assim como eu, existe uma Aruanda. É aí que as pessoas que você ama podem continuar presentes e que contar as memórias delas, como realmente elas foram, é a melhor homenagem que podem fazer.

Os meninos João Pedro e João Paulo, assassinados pelo Estado genocida, presentes. Os mortos pela Covid-19 e omissão do mesmo Estado, presentes. Aos presos políticos ou mortos no esquadrão da morte e enterrados em Perus, presentes. Os meus, nossos mortos, presentes.

Redes de Apoio

Iniciativas como a Rede de Apoio às Famílias de Vítimas Fatais de Covid-19 no Brasil, têm criado um espaço importante de solidariedade, onde é possível encontrar apoio especializado e humano que pode amenizar um pouco o sofrimento. Uma das ações é um memorial virtual de homenagem às vítimas de Covid-19. Para quem quiser mais informações, entre em contato por Whatsapp ou Telegram (11-93011-3281) ou pelo e-mail (memorialcoronabrasil@gmail.com).