De Ivone Lara à Fabiana Cozza: Colorismo, uma conversa necessária

Saber identificar o colorismo e usar nosso ‘lugar de fala’ para denunciá-lo nunca pode significar desalojar negras e negros claras/os da sua negritude, mas sem dúvidas usar essa passabilidade dos corpos para enegrecer cada vez mais os espaços.

Por Redação

07|06|2018

Alterado em 07|06|2018

Por Juliana Gonçalves

A polêmica da última semana em torno da atriz Fabiana Cozza viver no teatro Dona Ivone Lara trouxe a discussão sobre colorismo para o debate público. Talvez, pela primeira vez, com a força necessária para ultrapassar conversas entre os militantes negros.

Grandes veículos hegemônicos da imprensa como Folha, Yahoo, CBN, entre outros, trataram o assunto, principalmente depois da renúncia de Cozza ao papel, após os enfrentamentos feitos nas redes sociais.

Se o debate apareceu com força na arena pública online e física, isso não significa que o assunto foi tratado com qualidade. Uma amostra disso é a síntese feita pelos sites de opinião de notícias que davam conta de dizer que Fabiana foi considerada branca demais, que não tinha a cor certa” aos olhos “dos radicais” da internet que apontavam o colorismo agindo na escolha da cantora e atriz.

Na internet o debate ganhou várias nuances e polarizações. De quem comemorou a escolha de Cozza a quem a acusou de ser “afroconveniente”, de quem ressaltou a amizade da cantora e apreço com nossa dama do samba, Dona Ivone, a quem classificou Cozza de branca. Houve falas violentas e desnecessárias, mas houve gente também que, com respeito, conseguiu tratar do assunto.

Debater colorismo é dolorido porque fala das diferenças entre pessoas negras quando, historicamente, todos nós, negros diaspóricos, tentamos construir o nosso pertencimento enquanto povo. O colorismo fala de pessoas negras sob o olhar colonizado e colonizador da branquitude.

Aqui está a razão deste texto: um convite à reflexão sobre por que mesmo ao falar sobre nós, negros,  ao abordar o colorismo caímos na falácia de referenciar a branquitude, colocando os negros retintos e de pele clara em lados opostos das trincheiras.

Aproximamos em nossos discursos os negros e negras de pele clara da branquitude, de repente estamos conferindo a eles e elas “privilégios”, qualificando e mensurando dores que são subjetivas. Ao mesmo tempo, houve quem desqualificou a denúncia das pretas e pretos retintos, relativizando a perversidade e sofisticação do racismo. Foram acusados de criar desunião entre os negros, qualificados de “radicais” quem se colocou contra a escolha de Cozza.

Se o colorismo é cria do racismo e da branquitude, será que é possível fazermos esse debate necessário sem silenciar negros retintos ou destituir negros claros da sua negritude? Houve tentativas honestas, mas há limites de promover esse debate que precisa ser profundo e seguro na internet.

Nunca vi um debate sobre colorismo que, em algum momento, não se desvirtuasse para dizer que pardos não são negros e assim por diante. Conversando com alguns militantes mais velhos (façam esse exercício, gente) percebi que há questões geracionais e de gênero imbricadas neste debate sobre colorismo.

O fato de poucos homens entrarem nessa debate também é curioso. Sem dúvidas, a masculinidade experimenta de forma distinta o colorismo, mas vale a investigação. Considero que há aí um diálogo intenso sobre a solidão da mulher negra, assunto que merece outro texto.

Vamos lembrar que foi um esforço político do movimento negro em conseguir agregar estatisticamente pretos e “pardos” na categoria negro e criar mecanismos para ajudar a despertar a consciência política dos pardos. Foi assim que conseguimos ser mais da metade da população e destinatários de políticas públicas. Assim, qualquer discussão que pode resvalar no pertencimento de pessoas negras de pele clara no processo de construção de suas identidades e, consequentemente, a aproximação dessas da luta antirracista é vista como retrocesso pelos nossos mais velhos.

É preciso ter cuidado e responsabilidade neste debate.

Ao mesmo tempo, não dá para afirmar que é o colorismo que divide negros. Nós já estamos divididos nas diferentes estigmatizaçoes produzidas pelo olhar branco e seu sistema de privilégio. Estamos há tempos fazendo esforços para sair do lugar da subalternização, hipersexualização e violência e morte que nos colocaram.

Falar sobre colorismo não nos divide, mas silenciar essa questão sim, pois é ignorar nossas diferenças e dores distintas. É permitir que sobre o olhar branco, negros e negras perpetuam a hierarquização dos nossos corpos, e onde tem hierarquias há desigualdades. É preciso vigiar.

Ter essa conversa necessária não deveria criar cisões intransponíveis, não deveria criar polarizações, mas sim sínteses, tudo o que não aconteceu nessa discussão sobre Cozza e Lara.

Ao retomar o termo  colorismo cunhado em 1982 pela escritora e ativista negra Alice Walker, autora de A Cor Púrpura, vemos que as palavras e definições usadas por todos nós vão conduzindo o debate no sentido de criar barreiras e acentuar as polarizações.  O colorismo faz com que negros retintos e de pele clara vivenciem as opressões e oportunidades de acesso e mobilidade de maneiras distintas numa sociedade onde o racismo é estrutural.

Quando tentamos qualificar dizendo que negros retintos sofrem “mais” ou com eles o racismo “é maior”, estamos atrelando subjetividade a um processo que é objetivo. Onde está a balança do sofrimento? O sofrimento não pode ser o marcador de desigualdades que são estruturais. Quem qualifica o faz a partir de um ponto de vista pessoal e de uma experiência subjetiva. Se partimos para discutir particularidades temos também que considerar outros elementos como classe, território,  escolarização e vivência, por exemplo.

Quando entramos na seara do subjetivo, a relativização das dores de negros e negras de tonalidades diferentes é campo fértil para a criação da rivalidade que faz nascer um sentimento de injustiça até chegar à  falsa ideia de que pessoas de pele clara não seriam negras e desfrutariam de privilégios que até ontem eram apenas da branquitude.

Ser negro de pele clara não é ser menos negro, ou experienciar um racismo “light”, mas sim reconhecer que a pigmentação rende experiências com racismo distintas das experiências de negros de pele escura. O racismo é elemento estrutural que atravessa todos os negros sem exceção, e ele incide de maneira distinta dependendo do seu gênero, idade, classe social, território e tom de pele.

Aqui, faço um convite à reflexão porque cada vez menos vejo a possibilidade de se aplicar a palavra “privilégio” a pessoas negras porque é negar o que afirmamos sobre o racismo ser algo estruturante. Como vamos usar para uma pessoa negra, marcada pelo racismo estrutural a mesma palavra carregada de sentido que usamos para falar da branquitude? Ou seja, muitas vezes lemos como privilégio quando uma pessoa negra acessa o que é, na verdade, um direito.

“Ah, então se não vamos usar a palavra privilégio para falar de colorismo, qual palavra usamos?”. Não sei também, mas pense em como teorizamos sobre o privilégio branco ser algo inquestionável, fixo, estático e não dependente de nada eventual. Já o que ocorre com uma pessoa negra clara, em qualquer situação, não poderia ser privilégio porque é conjuntural, ocasional. Quem ama a palavra, a escrevivência e seus sentidos, sabe que a escolha das palavras é uma ação política. Temos que nos debruçar mais na qualificação desse debate e nos termos utilizados nele.

Colorismo e representação

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“Ser negro de pele clara não é ser menos negro, ou experienciar um racismo “light”, mas sim reconhecer que a pigmentação rende experiências com racismo distintas”

©Nappy .co

O debate sobre Fabiana Cozza  tinha um elemento agregado à questão do colorismo: a representação e a representatividade. Esse campo que está em crise e em disputa em todos os níveis: da política institucional à mídia. Nele, tradicionalmente todos os negros são rifados, porém os retintos são extintos desses lugares. Assim, é impensável e inegociável termos uma Dona Ivone Lara representada por uma negra clara. É problemático pessoas retintas  e claras com esse entendimento serem taxadas de estar “dividindo” os negros ao apontar isso.

Então, podemos entender que o colorismo vai além desse campo das representações, sendo, como disse acima, elemento objetivo na vida de todos os negros, mesmo que alguns não enxerguem.

Assim, esse debate feito exclusivamente a partir do campo das representações não contempla a complexidade do que é discutir o colorismo.

Quais são as táticas para lidar com o colorismo no mercado de trabalho, na escola, universidades, na saúde, na vida privada? Temos táticas reais, que levem em consideração a urgência da sobrevivência?

Se não queremos a culpa cristã dos brancos, que constrange, mas não leva à ação, vamos querer esse sentimento de culpa dos negros de pele clara? O pertencimento de pessoas negras de pele clara não deve ser negociável cada vez que o debate de colorismo se colocar.

Até a passabilidade do corpo negro de pele clara não acontece sem dor… Nossos corpos são políticos, sabemos. E é preciso entender que dores também são criadas quando determinados corpos nem ao menos conseguem chegar nesses espaços, como os corpos retintos.

Sempre que o assunto é o que nos diferencia, alguém saca as referências ao senhor de escravos de 1712, Willie Lyinche para afirmar que colocar as diferenças em campos irreconciliáveis faz parte de manter negros e negras desarticulados. Embora tenha acordo, é importante dizer que  não há indícios da veracidade da carta atribuída a ele. Seria mais uma obra ficcional, embora não haja dúvidas com relação aos artifícios usados para manter a escravidão possível por mais de 300 anos. Vale lembrar que o que separava negros na época da escravidão dificilmente era tonalidade de pele, mas sim as diferentes nacionalidades, idiomas e etnias. Segundo alguns historiadores, a diferenciação de negros pela cor da pele é algo que começou a ser conceituado apenas no final do século 19 e 20.

Renúncia de Fabiana Cozza

https://www.instagram.com/p/BjkLxCAFAr7/?taken-by=fabianacozza

A renúncia necessária da Cozza veio acompanhada de um texto que traz elementos que merecem a nossa atenção.

Ela conseguiu afirmar sua negritude dentro da historicidade do corpo negro no Brasil, pontuando que os caminhos que levaram sua pele ter o tom que tem foram tortuosos e extremamente violentos como o processo de miscigenação foi com os estupros das mulheres negras e não uma “busca por privilégios”.

Ao mesmo tempo ela qualifica (ou desqualifica) a luta negra no Brasil apontando a vigília do “politicamente correto”, trazendo um subtexto que quase dá para ler que na visão dela “o ódio venceu o amor”. Talvez esse trecho seja o mais problemático porque repete o que os defensores de Fabiana fizeram nas redes sociais: usaram argumentos que já ouvimos tantas e tantas vezes na boca dos brancos que se dizem não racistas ou tentam justificar o racismo.

Nem de um lado, nem de outro, podemos utilizar o referencial da branquitude para falar do colorismo, para falar de nós. Não sejamos nós a branquear negros e negras mais claros. Esse foi papel da democracia racial, esse doloroso mito.  Um caminho difícil, que incentiva a escolha de “lados”, nos colocando em trincheiras diferentes.

Quando Cozza fala da luta antirracista fica a dúvida se estamos tão afiados nos debates diaspóricos com relação ao nosso pertencimento e liberdade que enfrentamos com vigor uma possível Dona Ivone Lara mais clara, ou se esse episódio reflete o nosso atraso.

Quando o debate se refere a esse sistema que vê uma negritude de pele mais clara e traço menos negróides como algo com maior passabilidade, quando afirmamos que eles nos querem o menos negros possível, quando trazemos o debate para o estrutural, acredito que avançamos.

Enquanto mulher negra de pele clara, cis, feminista interseccional, eu nunca fecharei meus ouvidos à sofisticação máxima do racismo que criou inúmeras ferramentas objetivas e subjetivas para dividir os negros. A escuta ao racismo que minhas irmãs mais escuras sentem, não é só empatia, faz parte do meu comprometimento político com o combate ao racismo, mesmo que eu não consiga entender a fundo o que ela está sentindo. A escuta atenta deve ser um exercício diário.

O estigma da serva cuidadora que recai sobre o corpo retinto negro feminino traz dores e sofrimentos distintos do que ser uma negra de pela clara hiperssexualizada traz. Se uma é muito sexualizada, a outra é nada sexualizada e sofre de processo inverso, despertando pouco desejo e, mais tarde, menos afeto e solidão. A outra é procurada para a violência de aplacar o desejo e, assim, ser também vítima do abandono.

Misturo vivências aqui pra mostrar que somos atravessados por essas dores, nos machucamos por elas e elas são causadas pela branquitude. É nosso dever, dos lugares em que estamos, não reproduzir apagamentos com essa mulher negra que foi atravessada pela sua experiência com o racismo marcado por sua cor retinta.

O modo como o colorismo aparece criando cisões, não lugares e muito silenciamento, precisa ser combatido, mas reitero, jamais pela via do silêncio. Não há lados, há a revisão necessária da prática dos negros de pele clara com relação a enxergar a diferença existente entre claros e retintos e agir para combatê-las.

Digo isso porque senti e vi negras de pele clara e escura rendidas neste debate, se sentido acuadas, com medo de se colocar. Com medo de ser considerada menos negras ou muito radicais. Um debate que cria silêncios, reticências e não as sínteses  tão necessárias para avançar. Estamos falhando em utilizar a escuta como uma ferramenta de transformação. Esta ferramenta deve ser uma via de mão dupla. Negrxs de pele clara e retintos devem se permitir não apenas ouvir a experiência do outro, mas também sentir essa dor. A manutenção da nossa humanidade neste debate depende disso.

O colorismo é objetivo, estrutural e não cabe nele as generalizações. Nem todas as pessoas de pele clara conseguem negociar a sua negritude ou podem “escolher” se são negras ou não. Quando ignoramos isso, estamos apagando as sutilezas do racismo para esse grupo.

Assim como, com pessoas de pele escura que possivelmente nunca viveram a dúvida com relação ao seu pertencimento racial e que experienciaram lugares extremos de subalternização não são obrigadas a elaborar com sutileza as suas dores.

É um desafio se propor a falar sobre isso com respeito e honestidade.

Saber identificar o colorismo e usar nosso ‘lugar de fala’ para denunciá-lo nunca pode significar desalojar negras e negros claras/os da sua negritude, mas sem dúvidas usar essa passabilidade dos corpos para enegrecer cada vez mais os espaços.

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Referências: outros textos que discutem sobre o tema abordando especificamente o episódio com Fabiana Cozza e Dona Ivone Lara, com outras perspectivas. Aqui a Cidinha da Silva, aqui o AD Junior, e esse da Carta Capital, que deu voz à uma negra retinta e uma de pele mais clara: Rosane Borges e Paloma Amorim. Já este ,da Bianca Santana é anterior à polêmica.  Bóra refletir mais?

Juliana Gonçalves é jornalista, ativista dos direitos humanos com foco em raça e gênero, integra a Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial de São Paulo e a Marcha das Mulheres Negras/SP. É repórter do Brasil de Fato e têm textos publicados na Carta Capital, revista TPM/Trip e na revista eletrônica Calle 2 onde compartilha histórias que versam sobre sua condição no mundo: mulher negra, mãe, feminista, periférica, afrolatina, quiçá, livre.

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