Carregamos o mundo no ventre

Crônica mostra como a luta por direitos básicos afetam as mulheres nas periferias

Por Jéssica Moreira

15|02|2016

Alterado em 15|02|2016

Um relato pessoal sobre como é sentir o mundo no ventre.
Hoje, eu descobri como é sentir o mundo em meu ventre. Não, não estou grávida. Mas descobri que gesto, em mim, as dores das mulheres, de gente pobre como eu. Isso foi durante uma audiência pública em Perus, região noroeste de SP, que discutiu a vinda de um projeto habitacional para o entorno da Fábrica de Cimento de Perus (patrimônio público abandonado, primeira indústria do setor no Brasil), em um bairro onde não há sequer infraestrutura para os mais de 160 mil moradores que aqui já vivem.

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Mulher| pela artista Amanda Balice

Vários homens subiam ao palco para falar das questões ambientais, arquitetônicas, de transporte. Aí, olhei a senhora ao meu lado que carregava um filho nos braços, olhei no entorno, várias outras mulheres. Lembrei de minha mãe, do sonho da casa própria. E pensei: essa discussão não é, senão, uma discussão nossa, das mulheres, principalmente as periféricas e negras. Tomei coragem e entrei na fila do MIC. Tremia quando comecei. “Estou cansada”, foi minha primeira frase. Porque eu estou cansada de ver projetos de leis, leis, planos, documentos, todos eles encrustados em uma caixinha que não conversa com outras caixinhas. Cansada de ver mesas de debate com vozes masculinas. Cansada de ouvir “hômi” falando da solução de problemas que serão resolvidos por mulheres.

Pois quem, na história dos movimentos sociais, correu atrás de mutirões? De creches, escolas? Quem quer um teto baseado em infraestrutura pros filhos? Quem tem que pegar trem lotado cedinho levando o filho nas costas pra ir trabalhar? Quem é que carrega a dor de morar numa periferia e ver seu filho morto pela polícia, pelo fato de ser negro? Quem é que corre atrás de médico pros filhos, num bairro que não tem nem hospital? Quem é que sofre pela falta de espaços de lazer e cultura para os filhos e sofre, mais tarde, pela falta de escolas e universidades? Nós, mulheres.

Leia também: Que horas ela volta? e os sonhos de minha mãe para mim

Desabei em palavras e chamei as mulheres a falarem. Pois temos que falar, temos que mostrar que, pra além da teoria das leis, há história, há gente. Há histórias nas pessoas, nos lugares. A gente tem que cuidar também de nossa memória. Não é porque somos periféricos que não temos memória. Como disse a amiga de luta que falou depois de mim, Gisele Costa, nos subestimam achando que só queremos casa pra morar, é? Queremos casa, sim, e não somos contra isso. Mas queremos casa com escolas pras nossas crianças, com lazer e cultura, com saúde de qualidade, com área verde, enfim, com qualidade.

Depois disso tudo, senti meu corpo fluindo. E a sensação biológica de ser mulher se cruzou com a social e eu senti, ali, que depois de desaguar minhas palavras, eu estava desaguando também dentro de mim, em mais um ciclo menstrual. Descobri, depois de tanto tempo, que meu útero carrega as dores do mundo e eu, eu não vivo dissociada de uma coisa a outra. Como as outras mulheres, sou o mundo em mim. Descobri, enfim, a minha Mulher Selvagem citada no livro “Mulheres que Correm com os Lobos, de Clarissa Pinkola Este. 

Para entender a questão

Movimento pela Reapropriação da Fábrica de Cimento de Perus luta para que se construa um centro cultural e uma universidade na Fábrica, que é a primeira do setor no país, espaço marcado por memórias dos trabalhadores e trabalhadoras brasileiros. A dor, agora, é que após mais de 30 anos de luta de meu povo para a construção e preservação dessa história, os proprietários dessa antiga indústria resolveram que é tempo de empreender.

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Audiência Pública em Perus| Foto: Nelson Vicente de Souza

Ancorados pelas leis desse município, apresentaram um projeto habitacional a ser instalado ao redor do patrimônio histórico, com capacidade de trazer 5 mil famílias, o que equivale, mais ou menos, a 20 mil pessoas. E pessoas têm carros. Pelo menos, uns sete mil pode entrar nessa conta.

Em 2014, depois de muita batalha, esse entorno entrou no Plano Diretor Estratégico (PDE) da cidade. Foi decidido neste documento que aquilo seria o “Parque dos Queixadas”, em alusão aos sindicalistas que ali trabalharam. Mas lei, pra mim, que sou leiga, parece comprovante de cartão de crédito, você recebe, até guarda: na gaveta. Pois bem. Perus tem mais de 160 mil habitantes, não temos sequer um hospital. Escolas, Emeis, creches, ainda são super lotadas; o transporte público, a dizer palavra da Linha 7-Rubi, nos abarrota, cansaço chega antes mesmo do trabalho. Não somos contra pessoas virem morar em Perus. Não é isso, não.

Temos medo, sim, do crescimento desordenado, sem planejamento, da vinda de tantas pessoas para um lugar que não tem nada ainda nem para nós. Do trem que vai lotar em um sem número de vezes. Na falta de estrutura das rodovias. Das crianças que não terão escola. Do prédio histórico da fábrica que pode ser comprometido enquanto patrimônio. Os espaços de lazer e cultura que tanto lutamos e ainda não temos acesso, não há nada aqui. É disso que estamos falando!

Jéssica Moreira é jornalista, integrante do Nós, Mulheres da Periferia e moradora do bairro de Perus, região noroeste de São Paulo.