Ermínia Maricato: “Uma parte da população brasileira não tem acesso à cidade”

A urbanista Ermínia Maricato, professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), esteve à frente de importantes cargos ligados ao urbanismo no Brasil e no mundo. Na década de 70, participou da criação do PT (Partido dos Trabalhadores) e atuou fortemente nos movimentos habitacionais que surgiram no período. […]

Por Mayara Penina

28|05|2014

Alterado em 28|05|2014

A urbanista Ermínia Maricato, professora titular aposentada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), esteve à frente de importantes cargos ligados ao urbanismo no Brasil e no mundo.
Na década de 70, participou da criação do PT (Partido dos Trabalhadores) e atuou fortemente nos movimentos habitacionais que surgiram no período. Foi secretária de Habitação e Planejamento Urbano durante a gestão de Luiza Erundina, no início dos anos 90, em São Paulo. Entre 2003 e 2005, assumiu a Secretaria Executiva do Ministério das Cidades. Lá coordenou a Política Nacional de Desenvolvimento Urbano. Em 2009, foi conselheira do Programa das Nações Unidas para os Assentamentos Humanos (OnuHabitat).

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Ermínia Maricato.


A urbanista recebeu o Nós, mulheres da periferia em sua casa, em São Paulo, para falar sobre sua experiência em contato direto com mulheres da periferia da capital paulista e de sua militância a favor do direito à moradia e à cidade.
Na entrevista, Ermínia traça um histórico da falta de moradia em território nacional e aponta que ele vem desde os tempos da escravidão.  Ela mostra também como a negação do direito à moradia está relacionada à violência doméstica, saúde, educação e transporte.
Confira abaixo a entrevista na íntegra.
Nós, mulheres da Periferia: O sonho da casa própria é quase impossível para grande parte da população. Segundo o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), o déficit habitacional registrado no Brasil hoje é de 5,24 milhões de domicílios. Vemos que uma parcela mínima da população tem acesso à moradia formal. Qual é a sua visão sobre a origem deste problema?
[box type=”info”]Desenvolvido pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), em parceria com o portal ZAP Imóveis, o Índice FipeZap revela que em junho de 2013 a valorização do metro quadrado dos imóveis anunciados no Brasil foi  mais que o dobro da inflação pelo IPCA  (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo) projetada para o período. Enquanto que a estimativa para o índice oficial de alta de preços foi de 3,2%, o preço do metro quadrado anunciado aumentou 7,3% de janeiro a julho. A alta mensal em São Paulo foi de 1,3%, e o preço do metro quadrado anunciado médio foi de R$7.361.[/box]
Ermínia Maricato: As cidades brasileiras vivem um apartheid social e territorial porque a moradia formal no país é muito cara. Só foi a partir do programa “Minha Casa Minha Vida”que essa moradia de mercado chegou à classe média (de 4 a 10 salários mínimos). Apesar do esforço do Minha Casa Minha Vida, essa população ainda continua sem acesso à moradia também por conta do programa. Ele teve um impacto muito forte no mercado e tem causado um aumento no preço do metro quadrado. O “Minha Casa Minha Vida” insuflou a especulação imobiliária e teve o papel de recolocar a questão da segregação e a extensão das periferias da cidade.
NMP: Essa é uma exclusão histórica, não é?
Ermínia: É disso que temos que falar: a exclusão vem da sociedade escravocrata. Quando os escravos foram libertados, a abolição não se deu com distribuição de terra e acesso a determinados direitos, como aconteceu nos Estados Unidos. Parte da população libertada estava velha, não se integrou como força de trabalho e foi morar em áreas invadidas. Esse tipo de ocupação, que Gilberto Freyre descreve bem em “Sobrados e Mucambos”, gerou o que é a periferia atual, o que são as favelas. Há uma parte da população brasileira que não tem acesso à cidade.
No Brasil industrial (primeira metade do século XX), os operários acabam morando na periferia e construindo suas casas. A cesta de consumo do trabalhador não contém o custo da moradia Então, a moradia é resultado de um parcelamento de terra ocupado ilegalmente ou um lote clandestino. São Paulo cresceu muito a partir de loteamentos clandestinos e a construção da casa vem sendo feita pelos moradores nos finais de semana há muitos anos.
 
NMP: Em sua avaliação, por que o Estatuto da Cidade não é aplicado?
Ermínia: É impressionante, mas grande parte do judiciário desconhece os direitos previstos na legislação urbanística brasileira. Por isso entramos nos últimos anos com o boom imobiliário na gestão de prefeitos que estavam mais ‘pra cabrito tomando conta da horta’. Em síntese, isso tem a ver com o financiamento de campanha eleitoral. Entramos em uma política de obras que contraria a melhoria para as cidades. A especulação imobiliária é nossa maior tragédia se somada à precariedade do transporte coletivo.
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O relatório São Paulo Megacity Mental Health Surve apontou que a região metropolitana de São Paulo possui a maior incidência de perturbações mentais no mundo. O estudo feito pela OMS (Organização Mundial de Saúde) revela que 29,6% dos paulistanos, e moradores da região metropolitana, sofrem de algum tipo de perturbação mental. O levantamento pesquisou 24 grandes cidades em diferentes países.
 
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NMP: E como a mulher se insere neste contexto?
Ermínia: Um estudo da Universidade de São Paulo (USP) realizado em quatro metrópoles mundiais chegou à conclusão de que São Paulo concentra o maior número de casos de habitantes com depressão. A maior parte são mulheres. Acredito que isso combina com o fato de que mais de 30% dos chefes de família da região metropolitana são mulheres. Mulheres que precisam decidir se pagam o aluguel que está subindo barbaramente ou põe comida dentro de casa. E ainda ganham menos que os homens.
NMP: Quais dessas políticas e investimentos foram pensados para a mulher?
Ermínia: Foi uma conquista importante do “Minha Casa Minha Vida” que a escritura saísse no nome da mulher. Porque era uma reinvindicação dos movimentos formados, criados e liderados por mulheres. Foi uma conquista muito importante para que elas tenham segurança sobre a propriedade da casa.
NMP: Porque tanta dificuldade e burocracia?
Ermínia: É muito evidente que a lei no Brasil é um artifício na luta de classes. Quando eu falo que o judiciário deveria conhecer melhor a legislação urbanística é porque se conhecesse não haveria tantos despejos como vêm acontecendo. O despejo de Pinheirinho, ocorrido em janeiro de 2012, por exemplo, é ilegal numa constituição que fala da função social da propriedade. Todos os planos diretores falam da função social da propriedade. O Estatuto da Cidade é a regulamentação da função social da propriedade. Será que quando despejaram mais de 130 famílias, aquela propriedade estava cumprindo mais sua função social do que cumpria antes? Para aprovação de um projeto na prefeitura, de um financiamento, para abrir e fechar um negócio é uma dificuldade. O Estado é patrimonialista e está na mão da elite, não serve à população mais pobre, que é a maioria em um país de extrema desigualdade. A burocracia e a legislação levam a essa exclusão da legalidade urbanística. No município de São Paulo, 25% da população vive ilegalmente. Em cidades como Recife e Fortaleza, mais de 50% da população vive ilegalmente. Por que é tão difícil para população brasileira viver dentro da lei? É a lei que está errada? A sociedade que é intrinsecamente, institucionalmente ilegal.
NMP: No mandato da prefeita Luiza Erundina, quando a senhora foi secretária de Habitação, os mutirões de casas se popularizaram e parecem ter sido uma saída para muitos que alcançaram a casa própria. Por que eles não acontecem mais?
Ermínia: A nossa ideia era ter uma política maior que os mutirões. As pessoas já trabalhavam durante a semana e ainda tinham que trabalhar no sábado. De qualquer maneira, eles foram muito importantes. Porque trabalhando na construção das casas, as pessoas tinham muito mais controle sobre o projeto e sobre sua qualidade.A maioria dos mutirões era formada por mulheres. Elas colocavam a mão na massa, no trabalho pesado. O que muitos homens diziam é que as mulheres tinham mais capricho. Foi um período em que a mulher apareceu com uma força impressionante. Elas estavam saindo de uma condição de subalternidade para assumir a condição de liderança.
NMP: O direito à moradia tem a ver com direito à cidade. Como a senhora analisa a situação do transporte púbico atualmente?
Ermínia: Fazer conjuntos habitacionais fora cidade é inaceitável, embora seja a regra. Esse boom imobiliário expulsa as favelas dos bairros valorizados. Incêndios suspeitos em favelas, despejos, aumento dos alugueis. Uma das coisas que eu constatei ao longo da minha vida é que algumas das doenças respiratórias verificadas na periferia são influenciadas pela insalubridade das casas.  Eu me lembro de ter visto berço de bebê encostado em paredes úmidas. Isso é um problema do ponto de vista respiratório para crianças e idosos e as mães não percebem. Quando você pensa que a questão é de saúde, na verdade, é de habitação.

NMP: Para a mudança deste cenário, qual caminho a senhora acredita que nós, mulheres moradoras da periferia, devemos seguir?
Ermínia: Há um desconhecimento das forças que de fato mandam na cidade e no nosso cotidiano. Seria muito importante que as mulheres se preocupassem em conhecer mais sobre a vida delas. Por que elas têm que ter uma moradia precária? Por que elas têm que se sacrificar tanto para levar os filhos para a escola?