Que horas ela volta? e os sonhos de minha mãe para mim

Depois de ler algumas críticas e muito ouvir sobre o filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, resolvi que eu deveria assistir a este filme ao lado de quem realmente entende do assunto.

Por Jéssica Moreira

10|09|2015

Alterado em 10|09|2015

Depois de ler algumas críticas e muito ouvir sobre o filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert, resolvi que eu deveria assistir a este filme ao lado de quem realmente entende do assunto. Pois pra além da coincidência do nome Jéssica, eu também fui criada por uma empregada doméstica, minha mãe, dona Luzia Moreira. Que, aliás, até hoje dá um duro danado. Fiquei curiosa pra saber a opinião de alguém que realmente vive a questão no dia a dia desde os 14 anos de idade.
A personagem Val veio de Pernambuco, minha mãe do Paraná. Val não pôde trazer a filha para viver com ela, enquanto minha mãe veio com toda a família, inclusive a mãe Evarista, que, assim como a música de Chico, morreu na contramão atrapalhando o tráfego, para entregar a roupa passada a ferro para a patroa. Eu, assim como Jéssica, sou a primeira a quebrar o ciclo familiar e trocar a casa de família pela sala de aula.
O filme vai até a ferida da sociedade brasileira, onde a luta de classes é encoberta com a frase “você é quase da família”. O quase é a linha tênue que mantém a empregada na cozinha quando o dia é de festa. O quase é o andar que separa o quartinho sem ventilação do quarto luxuoso de hóspedes. O quase é o presentinho que substitui o salário digno, que sempre fica aquém daquilo que cada babá, empregada doméstica – mensalista ou diarista – realmente deveria receber segundo as leis que regem essas profissões.
Mas o “quase” é também a manutenção da terceirização do trabalho doméstico, o mesmo que deveria ser dividido igualmente entre os membros de uma família. E o patrão “trabalhador autônomo”, que bem aparece no filme, poderia muito bem levantar o corpo da cadeira e levar o prato até a cozinha, assim como as tantas outras atividades realizadas pela empregada Val – lavar, passar, guardar, acordar a família para o café. Todas poderiam muito bem ser divididas entre todos da casa, enquanto a “mãe-patroa” trabalha.

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Regina Casé em “Que horas ela volta?” (Divulgação)


A maior parte das casas onde minha mãe trabalhou foram de pessoas de Perus, nosso próprio bairro. Todos de classe média. Nossos vizinhos ou até parentes. Claro que muitos deles com nível superior, alguma condição econômica mais elevada, mas ninguém era rico.
Minha mãe sempre disse que isso também era difícil, uma vez que o salário também não era dos mais altos, mas em compensação, a relação era mais de amizade que trabalhista, o que também abre margem ao “quase”. Quase amiga, quase empregada. Ao assistir ao filme, dona Luzia se revoltou com Val algumas vezes. Não gostou de sua passividade perante aos patrões. Me narrou um episódio no qual uma das patroas pediu para que ficasse até às sete da noite para limpar a casa. “Se o que você me pagasse valesse a pena, eu até ficava, né?”!. Certeira. Minha mãe aprendeu desde cedo que não se pode ser passiva diante das adversidades da vida. E tá aí alguma coisa que ela não enxergou em Val. “Eu não teria paciência pra continuar em um emprego como esse, não”.
A PEC das domésticas trouxe uma série de direitos a essas trabalhadoras, como a garantia de salário nunca inferior ao mínimo (hoje R$788) e jornada de trabalho nunca superior a 8 horas diárias. Em maio desse ano, o Senado aprovou outros sete benefícios, que vão de contrato de trabalho e multa em caso de demissão. O texto foi sancionado em junho pela presidenta Dilma Rousseff.
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Assistir a esse filme com minha mãe é trazer à tona todas as suas memórias: de luta, cansaço, de dor. “Trabalhar em casa de família não é bom negócio para ninguém. Por mais legal que a família seja com a gente, a gente nunca é valorizada completamente. Nunca paga por tudo que trabalhamos. A gente faz demais dentro de uma casa. Você faz tudo por muito pouco. Tem dia que acordo e não tenho vontade de ir”. É a opinião da minha mãe, que, como a protagonista do filme, leva no corpo as dores diárias de quem se doa para uma casa que não a sua, uma família sem seus filhos.
Assim como Val, muitas são as mães da periferia que deixam seus filhos pela manhã para criarem os filhos das patroas até a noite virar. “Olha o filme, Val amou tanto o filho da patroa e a patroa não amou nem um pouquinho sua filha”. A troca não é mútua. O cuidado de um nem sempre é a valorização do outro.
De 2014 para 2015, decidi estudar inglês na Irlanda. Ao chegar do intercâmbio, em agosto, minha vizinha Célia, também empregada doméstica, me abraçou emocionada. “Oh você aí pra minha patroa ver que filha de empregada também faz intercâmbio. Ela, que pensa que lugar de filha de empregada é só na cozinha, ainda vai ver minha filha em Londres”, falou orgulhosa da filha que logo irá completar o ensino médio.
Eu, mais emocionada ainda, virei pra Célia e disse que, com certeza, sua filha vai para Londres ou qualquer outro lugar que ela desejar. Pois como Jéssica, eu só fui para a Irlanda onde, vejam, também fui babá, por ter tido o apoio dessa minha mãe guerreira. E foi como mãe que Luzia mais se enxergou em Val. Lembrou de quando eu passei na escola técnica, entrei na universidade e quando, finalmente, realizei o sonho de morar no exterior.
Embora bolsista do Prouni, eu só ingressei e permaneci na universidade porque dona Luzia sempre esteve na dianteira de minha vida, financeira ou emocionalmente. Porque ela me levava às 6h no ponto de ônibus para ir à escola técnica, nas ruas sem iluminação de Perus. E durante o ensino fundamental. E antes – até – quando, aos seis anos de idade, foi de sua camisa rosa que li a primeira palavra de minha vida – PA-KA-LO-LO – após ela brincar comigo de escolinha, ensinando-me as vogais.
Sei bem que muitas amigas de minha mãe não puderam estar presentes na vida de suas filhas como gostariam. Assim como Val no filme, para que tivessem uma vida melhor que a delas, essas mães – sempre doadoras de si próprias- abrem mão da maternidade com o coração nas mãos, mas com  o sonho de que suas crias serão maiores que elas puderam ser.
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Nós, as novas mulheres graduadas vindas da periferia, somos as Jéssicas filhas da Luzia, filhas da Val, filhas da Célia, que, muitas vezes, acompanharam suas mães nos afazeres das casas dos outros. A força de trabalho que hoje surge das bordas da cidade como professoras, jornalistas, advogadas, dentistas, empresárias, tantas outras, vêm das mesmas mãos de quem lavou as roupas que nunca poderiam dar aos filhos. De quem sempre limpou a casa que não era sua. De quem aguentou calada ofensa só pra garantir aos filhos o sustento, a educação que a sociedade não lhe garantiu no passado.
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Jéssica e sua mãe Luzia


Mas bonito mesmo é ver que o fato de Jéssica passar no vestibular serve como ponte definidora do empoderamento e autonomia de Val. Todo seu esforço em deixar a filha no nordeste para trabalhar e enviar dinheiro pra ela se tornam recompensados. Esse é o ponto alto da narrativa, é o processo contrário de filha empoderando mãe, mas num ato de retribuição, troca, presente esperado por toda a vida. Ponto alto dentro de mim também, de minha mãe ao meu lado, que, extasiada, quase deu um pulo da cadeira pra dizer “Olha Jéssica, lembrei de você, nas tantas vezes que você tava fazendo prova”. Quantas vezes ela me esperou quatro, cinco horas naqueles vestibulares inacabáveis? Quantas vezes ela e meu pai juntaram as moedas pra eu ler os livros recomendados. “Quantas vezes, enquanto eu passava roupa na casa da minha patroa, eu pedia a Deus, Jéssica, chorando, que você tivesse estudo”.
No mais, que haja cinema a céu aberto nas periferias para as nossas Vals terem acesso a uma história que pertence a elas, pois eu e minha mãe tivemos que tomar trem, metrô e ônibus para chegar até o local mais próximo.