Pra senzala nunca mais

Outro dia eu assisti um depoimento de uma amiga falando como ela enfrentou uma série de comentários racistas direcionados a ela no antigo emprego. E, ao final do seu depoimento, ela disse: “só quero falar uma coisa, nenhum preto vai voltar de novo pra senzala”. Aquela frase me tocou, achei forte e até dei um […]

Por Redação

04|07|2016

Alterado em 04|07|2016

Outro dia eu assisti um depoimento de uma amiga falando como ela enfrentou uma série de comentários racistas direcionados a ela no antigo emprego. E, ao final do seu depoimento, ela disse: “só quero falar uma coisa, nenhum preto vai voltar de novo pra senzala”. Aquela frase me tocou, achei forte e até dei um gritinho no final, porque era realmente impactante. Mas depois deixei passar e continuei a vida.
senzalanuncamais
Alguns dias depois eu presenciei um episódio triste, um amigo querido foi alvo de uma “brincadeirinha” racista e mesmo sendo vítima se questionou se deveria ou não levar o assunto para frente. E, então, eu o aconselhei: “Sim, nós precisamos ter voz. Nenhum preto vai voltar de novo pra senzala.” Bom, depois de reproduzir essa frase incrível que eu ouvi, parei para, realmente, refletir sobre ela.
Nenhum comentário, nenhuma brincadeira, nenhum ato racista pode sair impune. Eles devem ser contestados e levados para frente – além de crime, é um problema social que precisa ser discutido pela sociedade, obviamente. Não podemos mais fingir que não ouvimos ou que tal brincadeirinha de mau gosto não nos tocou. Não vamos aceitar e voltar para as nossas casas conformados que vivemos num país racista e tudo bem. NÃO, essa época já passou!
Eu sou daquelas pessoas que observam muito o que o outro fala, o jeito, o tom, os gestos. Observo porque acho curioso e, também, porque acredito que só observando conseguimos conhecer muito o outro. E de tantas observações cheguei à conclusão do quanto esse país tropical e majoritariamente negro é, de fato, racista. Mas não um racismo descarado, é aquele miudinho, que vem de dentro, que aparece com brincadeirinhas sem “intenções de machucar”. Mas é aí que a gente pega o gato no pulo “amigo, você acabou de se revelar!”
Ainda relembrando episódios que já presenciei, ouvi também algo que me pegou de jeito enquanto abordava temas raciais. Foi algo do tipo: “ah, mas o politicamente correto está politicamente chato, não se pode mais brincar com nada. As pessoas têm que ser bem resolvidas consigo mesmas”.
Oi, as pessoas têm que ser bem resolvidas consigo mesmas? Então, uma criança negra que pouco ou nada teve de representatividade nos desenhos animados que assistia, nas bonecas que brincava, nos produtos que consumia e depois de crescer tornou-se um@ adolescente que não se encaixava no perfil predominante de beleza; que nunca era uma opção de relacionamento sério com @s menin@s da escola; que teve que aprender a engolir o choro quando brincadeirinhas racistas eram feitas contra seu cabelo, seus traços fortes, sua cor; que mais tarde, no campo profissional, teve que ser duas, três vezes melhor pra conseguir respeito e, ainda, depois de toda essa experiência dolorosa que nenhum branc@ um dia passará, é cobrado para ser bem resolvido para continuar ouvindo brincadeiras estereotipadas e não tornar o mundo “politicamente chato”? Ah, faça-me o favor!
Dessa vez, eu não discuti, só ouvi e guardei esse pensamento pra mim. Precisava digerir melhor essa informação e entendi que é exatamente isso o que esperam [a sociedade] de nós: que sejamos fortes para continuarmos levando chicoteadas nas costas, sorrindo e achando que tudo não passa de uma brincadeira – afinal, precisam rir do nosso corpo, da nossa cor, do nosso sexo, do nosso cabelo, para que o mundo seja mais divertido. É isso o que esperam de nós – a moreninha, a mulata gostosa, o negão, o pretinho maloqueiro, a negra exótica – eles querem que continuemos carregando rótulos para eles rirem.
Sinto em lhes informar, mas não vamos mais carregar rótulos, nem aceitar as piadinhas estereotipadas que sempre nos foram direcionadas. Dói, fere, abre uma ferida que está aqui e somente nós sentimos – não tentem calar nossa dor ou nos colocar no campo do “vitimismo” como vocês tanto gostam de chamar. Enquanto doer, vamos gritar; enquanto for necessário, vamos discutir; enquanto o seu pensamento continuar nos incriminando pela cor da nossa pele, vamos encravar os punhos e dizer NÃO!
Vamos dizer “não” porque nenhum preto vai voltar de novo pra senzala.
jessicagoncalves
Jessica Gonçalves, 25 anos, moradora do Cachoeira, zona norte, assistente de comunicação e estudante de fotografia.