“Em meio a toques de recolher, a cidade parou, mas não o medo”

Maio de 2006. Eu estava no primeiro ano do ensino médio. Estudava tão longe de Perus (zona norte de São Paulo), que, para chegar às 7h na Lapa, tinha que acordar às 5h e tomar o ônibus às 6h. Minha mãe, que cresceu com medo das ruas escuras da madrugada, nunca me deixou ir sozinha […]

Por Jéssica Moreira

13|05|2016

Alterado em 13|05|2016

Maio de 2006. Eu estava no primeiro ano do ensino médio. Estudava tão longe de Perus (zona norte de São Paulo), que, para chegar às 7h na Lapa, tinha que acordar às 5h e tomar o ônibus às 6h. Minha mãe, que cresceu com medo das ruas escuras da madrugada, nunca me deixou ir sozinha de casa até o ponto. Todo dia ela fazia tudo igual, enquanto o pai continuava dormindo.
Mãe é loba selvagem na proteção de seus filhotes. Mãe não mede nem os próprios medos pra segurar, pelas mãos, o medo de suas crias. Por muito tempo, eu achei isso um exagero materno, uma proteção sem tamanho. Mas naqueles dias de maio, o medo de minha mãe não andava sozinho, ele estava em cada oração de “proteja meu filho de todo mal, amém“, em cada pedido de “fique em casa“, “não sai hoje, não, filho” das outras, tantas, mães que também tinham medo.
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Em meio aos toques de recolher e manchetes bombásticas, a cidade parou, mas não o medo, esse pairou na gente. Trancamos os portões. Ninguém saia. Recolha-se quem puder. Nesses dias, não tinha escola pra mim, porque os ônibus deixaram de circular. Só circulavam as notícias de que o bicho iria pegar.
Para quem mora na periferia, estrondo alto só tem dois significados. Ou é fogo de artifício ou é bala no asfalto. Os fogos são a anunciação de que a mercadoria chegou, enquanto os tiros, de que mais um se foi. Na redoma de minha casa, nos protegemos bem, nenhuma bala perdida.
Enquanto isso, nos outros cantos, das outras periferias, um cem número de meninos sucumbia nos asfaltos. Mortos a queima roupa nos portões de casa; na ida ao mercadinho; na prosa com o amigo na calçada. Para o Estado, só mais uns que morriam sem glória. Para as mães, a certeza que o medo cravado na nossa mente, não é e nunca foi coisa da nossa cabeça. Ele tá no tom da pele do menino que corre atrás da pipa desde pequenininho. Ser pobre e preto é a desculpa que o PM dá pra estraçalhar com nossos meninos.
E foi isso, exatamente, que eles fizeram com os meninos das mães de maio daquele ano, do ano passado, deste aqui e do ano que chegará. Para quem não vive a realidade da quebrada no dia a dia, o medo de nossas mães é medinho, é coisa pouca. Para quem não entende que a equação pobre e preto deságua em “suspeito”, nunca vai entender o nosso medo. Nunca vai entender quão corajoso é cada menino, cada menina, que escancara sua negritude, seja no cabelo, nos dreads ou black power, no estilo ou na música.
E para provar que Maio e o medo das mães ainda não acabou, é que a gente ainda precisa continuar lutando. Mas até na luta o choro se faz presente. Foi em março, eu estava em frente a uma grande bandeira de fundo branco trazendo as letras garrafais  “CONTRA O GENOCÍDIO DA JUVENTUDE PRETA”, quando aquele homem se aproximou. Fernando estava inconformado. Na madrugada de sábado para domingo, enquanto ainda vivíamos o êxtase que traz a vinda de um novo espaço cultural para a quebrada, chegava a notícia, também de quebrada: “Hoje, ali em cima, mataram mais um de nós”, ele falou, com os olhos doloridos (sim, olhos doloridos!), marejados.
Estávamos em festa em Perus, mais um espaço abandonado agora seria ocupado com arte, com Hip Hop. Mas, ali, escutei um dos depoimentos mais doídos que esse coração em festa poderia ouvir. E a certeza de que o muito que fazemos ainda é pouco, muito pouco.
Mataram a tira roupa, sem dó, mais um menino periférico. Não, não tive mais informações desse menino, mas ele podia ser qualquer um de nós, dos nossos. Ele podia ser um dos filhos da ocupação do ano passado ou de agora. Ele poderia, inclusive, ocupar novos lugares dele próprio, mas invadiram sua vida antes.
Os que não vivem a periferia vão chamar de melodrama, mas isso dói demais na gente. Estamos ali com nossas armas – rima corrida, poesia da vida – disputando nossos meninos/meninas com balas de canhão. E quando a comunidade traz a notícia, é sempre assim: “mataram MAIS UM“. Ou seja, é uma conta que vem somando, a cada dia, muitos inocentes e o choro de muitas mães.
Nesse mês, eu peço que, assim como as Mães de Maio, canalizemos as nossas dores em luta, em muitas lutas. Nenhum a menos, nossa vitória não será por acidente!