De quando a palavra pai vira sinônimo de saudade

Hoje, 2/7, completam dois anos desde a partida de meu pai, Sebastião, o Tiãozão. Desde então, eu me reinvento todos os dias. Sou metade orfã e metade responsável por essa família de mulheres aguerridas, formada por mim, minha mãe Luzia, 56, e minha avó Laurentina, 93. Quando você tem uma dor matriz, aquelas dores miúdas […]

Por Jéssica Moreira

02|07|2016

Alterado em 02|07|2016

Hoje, 2/7, completam dois anos desde a partida de meu pai, Sebastião, o Tiãozão. Desde então, eu me reinvento todos os dias. Sou metade orfã e metade responsável por essa família de mulheres aguerridas, formada por mim, minha mãe Luzia, 56, e minha avó Laurentina, 93. Quando você tem uma dor matriz, aquelas dores miúdas que nos fazem chorar, já não existem mais. Mas a memória, essa caixinha de música que vive cantarolando na gente, se faz tão presente, que a partida não é senão uma forma de eternizar o amor.

Era de manhãzinha do dia 1º de novembro de 1958, quando d. Laurentina, prenha, começou a sentir as primeiras contrações. O dia era de chuva fina na fazenda à beira da estrada de Atibaia (interior de SP). O menino mais velho, João, que dormia tranquilo no quarto, foi levado no colo, às pressas, até a sala. As meninas Luzia e Cecília dormiam na cozinha da casa de apenas três cômodos.

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Os irmãos Tião e Tiago, quando crianças


A parteira Benedita Joaquim, uma negra forte, baixinha, estava prestes a chegar. Às seis daquele dia, vinha ao mundo, no dia de todos os santos, Sebastião André Filho, que de vinte e cinco anos pra cá também sou eu, Jéssica Aparecida Moreira André, prazer.
A placenta foi enterrada em um buraco cavado ali mesmo no quartinho, pelas mãos do Bastião-pai-meu vô. O primeiro leite não foi da mãe. Os seios ainda estavam secos. A ama foi nhá Benedita, que havia dado à luz recentemente. Até os cinco, foi em Atibaia que ele fez morada. Depois, foi em Perus que o menino se fez adolescente. Aos 9, pra comprar sua primeira bicicleta, vendia amendoim aos vizinhos que iam assistir televisão preta-e-branca na sala de casa. Depois, foi no algodão doce que encontrou o meio de sustento.
Gabava-se até pouco tempo por conhecer cada rua dessa cidade de São Paulo pelas solas dos pés. Aos 17, as peladas no campo improvisado misturados às artimanhas da malandragem ditaram a passagem da adolescência à vida adulta. O irmão caçula, Tiago, era seu fiel escudeiro. Nos passes em jogo, nos passes da vida. A malandragem do morro da Flamengo nunca mais foi a mesma depois dessa dupla.
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Tião e Tiago no início da vida adulta, no bairro de Perus


Mas os trinta chegaram, o Ricardo, o Rafael e a Jéssica também. Agora, era ele o malandro-pai. Virou leitor de luz, de água, de gás. Depois, as crianças foram crescendo, veio também a Beatriz e o Tiãozão virou um malandro-vô. A idade havia chegado, ele não gostava muito e, por isso, pedia toda semana que eu tirasse seu bigode branco. Mas cabelo não pintava, não, o machismo encoberto não o permitia.
Anos iam, anos vinham, e o malandro começou a definhar. Parou de dirigir, parou de ir às festas do santo de Pirapora. Não caminhávamos mais pelo Parque da Luz cantando os sambas e os raps que, sozinhos, criávamos sentados à beira dos balcões dos butecos sujos – aqueles onde, outrora, ele vendia, dava aos amigos as fichas de fliperama. Maconha era assunto permitido entre nós e whisky com energético tomado no mesmo copo.
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Eu era, assim, a malandra-filha. Éramos assim, até que, um dia, a malandragem definhou, a diabetes chegou a 560. As mesmas pernas que caminhavam São Paulo já não aguentavam aqueles nervos de aço. Foram vinte dias de pronto-socorro, maca no corredor, médico cuzão tirando com nossa cara – ser pobre não é fácil, nem mesmo pra quem a vida inteira foi malandro, pra driblar esse sistema injusto.
Eu, do lado de cá, fingi de malandra e finjo até hoje, cantando a ele, ao pé do ouvido, à beira daqueles quartos gélidos, os sambas de nossa trajetória. No dia 2 de julho, às quinze pras onze da manhã, senti um aperto na espinha. Era o velho me dando tchau. Sabia que, depois dali, só sobrariam essas rasas memórias.
Quando a notícia chegou, já era madrugada. Tão fria quanta agora estavam suas mãos. Me vesti de coragem, de preto e daquela flor vermelha que eu não abro mão. Há tempos eu não avistava a família toda saindo de casa àquela hora. Lembrei, em um só flash, do início, do meio e do inesperado fim de nossa história. A mim, foi dado o dever de abrir a antiga porta de madeira da sala.
Aquelas leves chaves que ficavam penduradas na parede agora pesavam tanto quanto a dor do meu peito pela metade. Eu sabia que, daquela porta em diante, eu teria de abrir sozinha todas as outras. Antes de minha saída, no entanto, avistei do portão sua cadeira vazia.
Lembrei-me de quando me esperava retornar, enquanto ouvia baixinho as notícias do seu rádio verde acompanhado da inseparável lata de cerveja gelada. Fechei o portão, entrei no carro e a neblina do lado de fora do vidro não encostava nem perto da que estava dentro de mim.
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Ao chegar, me fiz de valente, como fingem ser todos os que dizem ser. Olhei pra dentro de mim e descobri que eu teria que aprender a me reinventar. Até ali, eu só sabia ser com você ao meu lado. Subi as escadarias brancas, gélidas, pedi solidão. Deixei a raiva me dominar, não achei justo – comigo, contigo, conosco.
Maldisse a vida e chorei como naquele dia que eu perdi a caixa de lápis de cor da FaberCastel no primeiro ano da escola – o colorido de minha vida havia partido. Vivi cada gota daquela dor, até o sol raiar. Das faces que chegavam sem cessar, só me recordo das mãos que me entregaram aquelas flores brancas e amarelas, dizendo que eu devia colocá-las ao seu lado. Foi só aí, então, que me dei conta que não havia nada mais a fazer senão jogar-te essas pétalas. O peito apertou, gritou sufocado, mas não tanto quanto quando eu lembrei de “seu pedido final”.
E mesmo soando estranho aos olhos que me olhavam, eu cantei. Cantei todos os seus sambas de mesa, de amor, de dor. Pois se houver tristeza, que seja bonita, de tristeza feia o poeta não gosta. Na paz do senhor, PAI.
Se eu soubesse que o primeiro de novembro de 2013 seria o seu último aniversário, eu teria te dado mais abraços que palavras, mais risadas que até logos, mais de mim pra você do que para o mundo, breve mundo. Se eu soubesse da vida, eu viveria mais das nossas manhãs, eu comeria mais das suas saladas de tomate com alface e beberia mais da sua cerveja, só pra ter uma desculpa miúda pra gente conversar sobre a vida na cadeira quebrada da varanda. Só pra gente falar da malandragem do outro lado do morro e que, na vida, é importante chegar de mansinho, assim como “quem não quer nada”.
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Tião, meu pai


A verdade é que, em todos os meus poemas, eu nunca havia pensado que a palavra pai poderia se tornar sinônimo de saudade, dessa que para na guela e transborda pelo zoio! Dessa que, todo santo dia, eu fico juntando, feito cacos. Vivo com isso como se vivem os doentes crônicos. Vou morrer com essa dor aqui cravada em mim e, enquanto eu viver, meu pai vive junto. E não mexe comigo, não, que a malandragem que vivia nele – ancorada pelas armas de Jorge -, em mim é em dobro. Porque como diriam, malandro não para, meu pai só deu um tempo.