Biéla: minha definição mais bonita do feminismo

(Vó, desculpe a demora em soltar esse texto. É que achei - e ainda acho - que não está a sua altura)

Por Semayat S. Oliveira

15|04|2015

Alterado em 15|04|2015

“Sua tia ligou e disse que a respiração dela está muito fraquinha”, disse-me minha mãe sobre sua mãe e minha avó na noite da última quinta-feira.

Talvez eu vá dessa vida sem entender por que as grandes histórias demoram a ser contadas. Ou nem são. E por ser inconformada com isso, não poderia permitir que a passagem tão bonita de minha avó nesse mundo fosse sabida apenas pela família Silva.

Gabriela Pereira da Silva, a Belinha, Biéla ou apenas Bié. Mãe de minha mãe e outros 8 filhos. Sete são mulheres. Foi companheira de Geraldo Antonio da Silva por 50 anos, a comemoração das bodas de ouro deles foi uma das cenas mais bonitas que eu vi! E também foi uma das últimas que tive dos dois juntos. Me lembro quando meu avô se despediu de nós, repentinamente, em 1992. Ouvi minha avó dizer: “esperarei o dia para reencontrá-lo”.

Vinda de Minas Gerais, cidade de Ouro Fino, se instalou e criou sua família em Presidente Prudente, interior de São Paulo. Nos últimos anos, o Parkinson foi tirando, pouco a pouco, sua mobilidade e energia física. Eu vi o quanto resistiu e o quanto preservou sua independência até o último minuto. Ela fez o que pode por si e por minha família até que os tremores tiraram seu equilíbrio corporal por completo.

Quando chegou o momento de restringir a expansão de suas vontades à cama, sabíamos o quanto seria penoso para ela. Mas os olhos… Ah! Esses continuaram fortes. Firmes. E logo as fiéis cuidadoras, suas filhas, entenderam o que significava cada balbucio, cada gesto, cada direção dos olhos.

Eu sei. Não poder cantar, sentar conosco no quintal, contar suas histórias, ter dificuldade de se fazer entender, não poder nos servir um café, preparar nosso chá ou fazer nosso pão eram motivos que faziam seu coração doer demais. E o nosso também. Acima disso, com certeza estava a dor de ter que pedir e precisar de alguém para tudo. Ela era independente de nascença!

E não vejo como ter sido diferente! Eu me pergunto: qual foi a vez que vi dona Belinha reclamar de alguma coisa de sua vida? Quando a vi protelar algo, deixar pra depois? A resposta foi: eu não vi!

Aos seis anos, minha avó foi dada para uma família que disse para seus pais que cuidaria dela. O cuidado, nesse caso, incluía tirar água do poço todos os dias. Como ela era muito baixinha e não alcançava a corda, providenciaram um banquinho. Assim foi sua infância, trabalhando. Logo se tornou doméstica e na juventude conheceu meu avô, “Geraldim”, como ela o chamava. Para se casar, mudou sua idade de 16 para 21. Casou!

Minhas tias contaram que meu avó se levantava todos os dias bem cedo, buscava água, fazia café e levava na cama pra minha avó. Antes de ir para o trabalho, ele pedia às crianças que não a fizessem passar nervoso. O que minha avó tinha de candura e bondade, tinha de braveza também. Ela era do tipo que defendia filhos e os netos no grito, na mão e no cabo de vassoura! “Não é por que somos pobres e negros que vocês vão nos tratar de qualquer jeito!”, era uma de suas frases.

Ela peitava todo mundo e falava “nóis pode” com a maior imponência, cabeça erguida e firmeza desse mundo! Sem problemas algum! Ela estudou dois anos, mas escrevia o que precisava escrever e não se separava dos livros e da bíblia! “Minha mãe lia pra gente sem gaguejar”, disse minha tia Dulce.

E o dinheiro do meu avô ia para as mãos dela ainda no envelope fechado. Era a responsável por  somar com o que recebia para arcar com as contas da casa. Disse minha madrinha que seu pai pedia que ela ficasse em casa, se arrumasse mais e não trabalhasse pra fora.

Mas Biéla trabalhava, não usava batom e entre suas grandes vaidades estavam sua longa trança, com os cabelos até a lombar, seus vestidos e seu penhoar azul, feitos por ela mesma. Ela dizia “que queria que meu avô fosse até a venda pra saber o preço das coisas”, só pra entender a importância que o trabalho dela tinha pra manutenção da família!

Ela acompanhava e auxiliava a sogra, que era parteira. Preparava a alimentação para a mãe em trabalho de parto e dava de mama ao recém nascido, se fosse necessário. Em todo terreno em que morou, fez uma horta. Plantava o que se dava pra comer nas refeições e colhia o que se batia pra beber. É nítida a imagem em minha mente: eu pequenina de mão dada com vovó, andando entre um verdume bonito até chegar nos morangos. Lá, colhíamos e comíamos juntas.

Costurava e bordava as roupas que todos vestiam, as toalhas das mesas onde se serviam e os tapetes que pisavam. Com perfeição e competência, não há nada na casa de antes e na casa de hoje que não se remeta a ela.

Mas não é disso tudo que vinha sua renda. Lavadeira, minha avó só morava em casas que tinham grama o suficiente para quarar suas roupas. Quarar, pra quem não sabe (como eu não sabia), é a ciência de usar o sabão da roupa, a luz do sol e o calor da grama para tirar manchas. O que se usa de vanish hoje, ela plantava no quintal.

Antes desse processo, ela fervia a roupa em uma lata de tinta transformada em uma espécie de fogão, assim, não gastava gás! “Às vezes ela fazia arroz e feijão assim também”. Depois de ferver, jogava na água e batia no batedouro já com o sabão. “Quanto mais deixava de molho, quanto mais quarava, mais branco ficava.” Ela que torcia, engomava e passava todas as peças antes de entregar.

Foram mais de 10 famílias atendidas simultaneamente! As filhas mais velhas passavam nos portões dos clientes recolhendo as trouxas de roupa sujas e, depois, os mais novos entregavam já engomadas, passadas e no cabide. Contam minhas tias que as roupas pareciam novas! Que as golas das camisas dos homens então, nem se fala. Perfeitas! “Na hora de passar, às vezes, ela colocava um pouco de álcool nas peças pra facilitar”.

E durante o dia, entre água e sabão, com a barriga encharcada, sempre saia o café da manhã, o almoço, o café da tarde e o jantar. “Como tinha muita criança, quando uma chorava, ela vinha toda molhada – me lembro como se fosse hoje –  colocava uma toalha na barriga pra não passar friagem pro bebê e dava de mama.” Depois ela voltava pro trabalho. “Ahh, ela já plantou e vendeu vassouras (…) e teve uma época em que vendeu coxinha também”.

Minhas tias e a minha mãe começaram no trabalho muito cedo, assim como meus tios.  Todas as mulheres foram empregadas domésticas. Minha avó ensinou o serviço direitinho e “quando não ficava bom, tinha que fazer de novo”. Mas também ensinou a todos os seus filhos a não aceitarem desaforo, a se defenderem e a se protegerem mutuamente. Uma das coisas que nunca permitiu, por exemplo, foi que suas filhas dormissem na casa onde trabalhavam.

Na hora de escolherem um(a) companheiro(a), meninas e meninos, ela sempre reforçou que era preciso ter cuidado, optar por alguém que ajudasse e compartilhasse a vida. Pedia para terem cautela se escolhessem casar com homens ou mulheres da pele branca, por que, na primeira briga, a cor da pele seria motivo para agressão. Lembrava que lutou e defendeu sua família a vida inteira do racismo, que não queria ver isso acontecer dentro de casa.

Infelizmente, ela se despediu de nós no último sábado, dia 11 de abril. E eu fiquei com a vontade de compartilhar com mais gente a grandeza dessa mulher, que da forma mais simples e silenciosa, transformou a vida de gente que não cabe em conta.

Ela é minha inspiração. Meu exemplo de mulher que foi o que quis ser! Que escolheu seu caminho e que não se contaminou com o conceito de pobreza. Ela era rica e fez uma família rica!  Mulher que enfrentou e se protegeu, como soube e pode, das desigualdades e dos abusos do mundo. Ela tinha fé na vida, no amor, na transformação.

E eu fico com esse semblante de força e felicidade guardado em meu coração.

(Vó, desculpe abrir sua vida assim. Acho que você não gosta muito de aparecer. Mas é que outras pessoas precisam te conhecer. E outras Gabrielas precisam saber o valor que têm, assim como você. Eu a amo, hoje e sempre.)